Psicodelicamente
Psicodelicamente
Fórum Mundial da Ayahuasca mira diálogo entre saberes indígenas e ciência
Parceiro do encontro previsto para 2026 em Girona, Benjamin De Loenen, fundador do Iceers, fala dos bastidores do evento pioneiro, que terá uma prévia no Festival Híbrido em São Paulo


A beberagem indígena ayahuasca atravessou séculos na floresta amazônica como elo entre mundos invisíveis. Hoje, diante da expansão do mercado psicodélico e das tensões entre ciência, espiritualidade e direitos dos povos originários, novas conexões precisam ser estabelecidas. Ajudar nessa travessia delicada é o que inspira o Fórum Mundial da Ayahuasca. Previsto para 2026 em Girona, na Catalunha, o encontro pretende criar, em solo europeu, um espaço inédito de diálogo entre saberes ancestrais, pesquisa e instituições globais.
O encontro é articulado por organizações e lideranças indígenas no Brasil, sob a coordenação do Instituto Yorenka, em parceria na Espanha com o Iceers (sigla em inglês para Centro Internacional para Educação, Pesquisa e Serviço Etnobotânico), sediado em Barcelona. Juntos, pretendem reunir representantes de todo o mundo em torno de uma questão cada vez mais urgente: como assegurar que as tradições ligadas à ayahuasca, e a outras plantas psicodélicas preservadas por séculos, não sejam engolidas pelo hype do mercado global dessas substâncias.
O tema chega também ao Brasil neste mês. O Festival Híbrido 2025, que acontece nos próximos dias 11 e 12 de outubro em São Paulo, terá um painel dedicado ao Fórum Mundial da Ayahuasca dentro da programação do Psychedelic Talks, espaço de debates sobre psicodélicos sob a curadoria deste repórter. A mesa, assim como o encontro previsto para a Espanha, pretende consolidar um espaço de diálogo e de reconhecimento do papel das tradições amazônicas e indígenas em um momento em que o futuro das medicinas psicodélicas está em disputa.
Benjamin De Loenen, fundador e diretor executivo do Iceers, que participará do debate de forma online, falou com exclusividade ao blog Psicodelicamente sobre os objetivos dessa articulação. Ele comentou o processo de construção do fórum, a escolha da Espanha como sede, os desafios jurídicos envolvendo a ayahuasca e o papel das comunidades indígenas nesse diálogo global.
Ben de Loenen, do Iceers, e Jairo Lima, do Instituto Yorenka. Foto: Arquivo pessoal
Segundo o diretor executivo do Iceers, o fórum vai muito além de um evento. “Estamos falando de um processo coletivo que vem sendo tecido há anos, em diálogo com lideranças indígenas. A ideia é criar um espaço global de encontro, onde diferentes mundos possam dialogar em pé de igualdade, sem extrativismo, construindo relações pautadas pela humildade e pela escuta”, afirma.
Em linhas gerais, ele define a construção como um processo de cuidado responsável (o que chama de stewardship) voltado à proteção das tradições, dos direitos e dos territórios. “Queremos que o fórum reverbere por muitos anos, abrindo um ciclo de reconhecimento e de compromisso internacional com essas tradições”, acrescenta.
Espanha como território simbólico
A escolha de Girona, na Catalunha, para sediar a primeira edição não passou sem polêmica. Para muitos, faria mais sentido que o encontro acontecesse na própria Amazônia. De Loenen reconhece o debate, mas defende a decisão como um gesto simbólico. “Foi uma forma de ressignificar antigas rotas coloniais. Levar essa mensagem à Europa é também ampliar o público e envolver atores estratégicos, como governos e organizações internacionais, num momento crítico”, afirma.
A história da ayahuasca na Espanha é longa, já são cerca de 40 anos de presença. Por muito tempo, as cerimônias aconteciam em comunidades pequenas do Daime e da UDV (União do Vegetal), os dois principais grupos religiosos ayahuasqueiros brasileiros, ou em círculos conduzidos por curandeiros indígenas. Mas a partir de 2008, o cenário mudou, e não para melhor.
Hoje, a Espanha é o país com o maior número de incidentes legais envolvendo a ayahuasca em todo o mundo, afirma De Loenen. “Com a chegada da Ayahuasca Internacional, que introduziu uma abordagem empresarial e passou a posicionar a ayahuasca no imaginário coletivo por meio de um intenso trabalho de marketing, as detenções se tornaram mais frequentes.”
Criada pelo empresário argentino Alberto Varela, a Ayahuasca Internacional, também conhecida como Inner Mastery, expandiu-se a partir da Espanha para diversos países, oferecendo retiros pagos e promovendo a bebida em larga escala. O modelo comercial gerou críticas de lideranças indígenas e de pesquisadores e passou a atrair a atenção das autoridades, que intensificaram fiscalizações e apreensões.
Apesar disso, até hoje não houve prisões nem condenações definitivas. “Graças à atuação jurídica e à produção de documentos de alto nível, esses processos não resultaram em sentenças. Mas a Espanha continua sendo um território de tensão”, observa. Segundo ele, o fórum em Girona não terá cerimônias de ayahuasca. A proposta é reunir pessoas em um espaço de encontros, diálogos, oficinas e apresentações culturais e artísticas.
Entre bolhas e marketing
O Fórum Mundial da Ayahuasca foi anunciado oficialmente na conferência da Maps (Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos, na sigla em inglês), realizada em Denver em junho deste ano. Para De Loenen, o encontro expôs os dilemas do campo psicodélico. Apesar da relevância do evento, a própria estrutura do congresso impediu um verdadeiro encontro entre mundos. Organizado em bolhas como clinical trial track (pesquisa clínica), plant medicine track (plantas medicinais), policy track (políticas públicas) e business track (negócios), o formato manteve cada público em seu próprio espaço e pouco favoreceu o diálogo e a troca de aprendizados, observa o diretor do Iceers.
“O espaço de exposições refletia bem o momento: poucas ONGs, muitas empresas, estratégias de marketing, igrejas psicodélicas e até produtos de microdosagem de ayahuasca”, relata De Loenen. “Vivemos um ponto crucial: é preciso construir processos que evitem a mercantilização das plantas sagradas e fortaleçam relações respeitosas com os povos que preservaram esses saberes por milênios.”
A conferência em Denver também foi marcada por frustração após a FDA rejeitar recentemente a aprovação do MDMA como tratamento para transtorno de estresse pós-traumático. Rick Doblin, fundador da MAPS, resumiu o clima logo na abertura: “Na última conferência, eu me vesti todo de branco. Hoje estou de branco, preto e azul.”
Ainda assim, para De Loenen, o encontro abriu novas possibilidades. A delegação indígena organizada pelo IMC (Indigenous Medicine Conservation Fund) teve presença muito maior que em edições anteriores e trouxe mensagens de esperança. “Houve falas poderosas sobre um novo tempo, em que as ciências ancestrais entram em verdadeiro diálogo com as ciências ocidentais, buscando complementaridade respeitosa. É disso que o mundo precisa em meio a guerras, desastres naturais e caos global.”
Divulgação do Fórum Mundial da Ayahuasca em Denver. Foto: Arquivo pessoal
‘Outro futuro é possível’
Foi nesse ambiente, entre o pessimismo da ciência e a esperança dos povos originários, que o Fórum Mundial da Ayahuasca começou a ser apresentado. “Mais do que lançar um site ou distribuir folhetos, estávamos ali para afirmar que outro futuro é possível, desde que construído em aliança com os povos que carregam essas tradições”, resume De Loenen.
O encontro que será realizado em Girona ganha uma prévia em São Paulo. No Festival Híbrido 2025, o painel “Das conferências indígenas ao Fórum Mundial da Ayahuasca” acontece no sábado, 12 de outubro, das 18h às 19h, dentro da programação do Psychedelic Talks.
A mesa propõe uma escuta intercultural genuína e reflexões sobre como aproximar ciência ocidental e práticas tradicionais sem apagamento nem apropriação. O debate vai abordar a trajetória do movimento político que nasceu nas conferências indígenas da ayahuasca no Acre e a construção do Fórum Mundial da Ayahuasca, que será realizado em 2026 em Girona, na Espanha.
Participam do debate a liderança Ashaninka Raine Piyãko, vice-presidente do Instituto Yorenka Tasorentsi, organização que atua com reflorestamento, educação intercultural e valorização dos saberes tradicionais. Também integram a mesa o indigenista Jairo Lima, com mais de 30 anos de atuação no Juruá acreano e conselheiro do Yorenka, onde coordena a conferência indígena e o fórum, Benjamin De Loenen, fundador e diretor executivo do Iceers, que participa de forma online; e a jornalista Caroline Apple, colunista do Brasil de Fato e colaboradora do Yorenka na comunicação do fórum. A mediação será feita por este repórter, curador do Psychedelic Talks e do eixo sobre psicodélicos no Festival Híbrido 2025.
Serviço
O Festival Híbrido 2025 será realizado nos dias 11 e 12 de outubro, no Komplexo Tempo, na Mooca, em São Paulo, reunindo arte, cultura, debates e experiências. O eixo psicodélico terá mais de 30 convidados em mesas de discussão, além de feira do livro e exposições. Veja a programação completa.
O Fórum Mundial da Ayahuasca acontece em 2026, em Girona, Espanha. Mais informações no site oficial.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.