Cultura
Olhar as estrelas e também o poço
Marilena Chauí mostra, em seu novo livro, porque cabe ao filósofo unir dois espíritos: o do geômetra e o da finesse


Gilles Deleuze dizia que só após um longo trajeto seria possível colocar perguntas simples como: o que é a filosofia? Ele dizia isso à ocasião do lançamento de um de seus últimos livros, exatamente aquele, escrito com Félix Guattari, que tinha por título a pergunta simples que só vem ao final.
Marilena Chauí tomou para si essa tarefa em Filosofia, Um Modo de Vida. Mas engana-se quem acredita encontrar aqui uma dentre outras introduções à filosofia. Encontraremos, na verdade, um belo exemplo de filosofia em exercício, ou seja, da confrontação desperta com questões que nos atravessam a partir da perspectiva da problematização de nossas imagens do pensamento.
Marilena Chauí tem uma posição única que se refere à continuação de uma combativa tradição de intelectuais públicos. Mas, enquanto muitos desses intelectuais acabaram por passar à política e não mais voltar à pesquisa e a docência, Marilena fez outro caminho, mais raro e rico.
Após uma passagem como secretária de Cultura do município de São Paulo, ela retornou à universidade para aprofundar suas pesquisas; dedicar-se à produção de livros didáticos, continuar participando do debate público e estar na linha de frente nos momentos mais difíceis da história recente, em artigos de jornais, manifestações populares, entrevistas e mobilizações de toda ordem.
Há algo de exemplar nessa trajetória dedicada ao exercício sistemático da crítica e ao desejo de não aceitar as distinções entre teoria e práxis. Por isso sua resposta à pergunta sobre o que é e o que pode a filosofia é tão importante. Neste livro, ela nos mostra como é possível problematizar o começo da atividade filosófica. Não por acaso, o livro inicia-se com a primeira imagem que temos de um filósofo.
“Conta a lenda que o primeiro filósofo, Tales de Mileto, interessava-se pelo estudo das estrelas e que um dia, olhando para o céu, tropeçou e caiu numa vala.” Ou seja, o primeiro filósofo é alguém que tropeça e cai. O senso comum vê nisso a prova da ociosidade de seu saber: alguém que não vê nem a vala à sua frente não tem como saber sobre o que está a anos-luz de distância.
Mas talvez a coisa mais interessante é que essa história chegou até nós exatamente porque outro filósofo, Diógenes Laércio, a contou. Ou seja, ela é a própria filosofia falando de si, pois filosofar é, como dirá Sartre séculos depois, pensar contra si mesmo. Trata-se de uma atividade que exige dois olhares: um para as estrelas e outro para o poço.
Dois olhares. Veremos essa exigência, por exemplo, em Pascal, que lembrava haver pessoas que tinham espírito de geômetra, pois enxergavam apenas grandes traços e relações, e outras que tinham espírito de finesse (finura, sutileza, perspicácia), pois sabiam que “Deus está nos detalhes”. Ao filósofo cabia tentar ter os dois. É, de certa forma, sobre a procura desses dois espíritos o livro de Marilena.
A autora mobiliza a história da filosofia (Spinoza, Aristóteles, Kant, La Boétie) para refletir sobre questões que atravessam a vida contemporânea, como o lugar da ética, a decomposição espaço-temporal da experiência produzida pela realidade virtual, as relações entre natureza e cultura, entre humano e não humano. Dois olhares, sempre.
Filosofia, Um Modo de Vida. Marilena Chauí. Editora Planeta (144 págs., 56,90 reais)
O resultado é uma exemplificação do que pode um pensamento que se abre para os sofrimentos de nossa época ao mesmo tempo que questiona como as estruturas de nosso pensamento se formaram e continuam a se repetir.
Em um dos ensaios, Marilena confronta-se com os chamados de “retorno à ética”, tornados uma panaceia geral. Ela começa por se voltar aos gregos para lembrar como o problema levantado pela noção de virtude enquanto fundamento da ação moral só pode resolver-se através do apelo a uma intersubjetividade socialmente atuante e autorreflexiva.
A virtude não é uma descrição individual do agente moral, mas uma forma da vida social capaz de implicar sujeitos. Essa compreensão da necessidade de pensar a ação moral como ação social poderia nos levar a Hegel, mas também a Spinoza. Ela permite a preservação de dimensões fundamentais da experiência moderna que servem de horizonte para a crítica social do presente.
Pois o “retorno à ética” – que parece ser um chamado à racionalização moral de nossas vidas – rapidamente aparece como uma concepção regressiva da vida pública, que embaralha a distinção entre público e privado, a fim de despolitizar a política. Assim, vemos o espaço público, cada vez mais, avaliar figuras políticas através de sua vida privada.
Da mesma forma, os meios de comunicação vão se assemelhando a “consultórios sentimentais”, com o vocabulário político dando lugar a um vocabulário psicológico. Em vez de discussões sobre equidade, espoliação, isonomia, veremos discussões sobre desrespeito, ofensa, empatia.
Alguém poderia dizer que o privado é político. Sim, mas se algo importante da emancipação passa pela politização do privado, um fenômeno de sujeição ocorre com a privatização do político. Operar essa distinção é uma forma de entender como o poder serve-se de nossas lutas para desvirtuá-las, dando a impressão de fazer avançar a liberdade quando aprofunda a servidão. Não por acaso, o livro termina com uma reflexão sobre os móbiles da servidão voluntária.
Esse último ensaio termina com Marilena voltando-se a La Boétie para mostrar como certa modernidade se serviu do descentramento provocado pelo contato dos europeus com os povos originários, a fim de melhor pensar como a liberdade nos foi roubada – e como a filosofia pode ser o desvelamento desse roubo. Movimento de pensamento que só alguém que anda entre as estrelas e as pedras pode fazer. •
Publicado na edição n° 1383 de CartaCapital, em 15 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Olhar as estrelas e também o poço’
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