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Paz sem voz

Os palestinos serão privados de suas escolhas, mas os negócios têm tudo para prosperar

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Witkoff e Kushner, genro de Trump, estão no centro das negociações. O presidente dos EUA pressiona por uma solução rápida, mas fez novas concessões a Benjamin Netanyahu – Imagem: Joyce N. Boghosian/Casa Branca Oficial e Brendan Smialowski/AFP
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Exatos dois anos depois do ignominioso atentado do Hamas que deixou um rastro de 1,2 mil judeus mortos e foi o estopim para uma vingança selvagem de Israel, elevada ao patamar de genocídio, conforme as conclusões recentes dos especialistas a serviço das Nações Unidas, um cessar-fogo na Faixa de Gaza foi anunciado na noite da quarta-feira 8 pelo presidente dos Estados Unidos, ­Donald Trump, principal fiador das negociações. Embora os termos do acordo de longo prazo apresentado pelo republicano favoreçam, sem nenhum pudor, o aliado Benjamin Netanyahu e continuem absolutamente vagos, as circunstâncias dificultaram qualquer tentativa de sabotagem das partes envolvidas. Diante do cenário de terra arrasada, da morte de quase 70 mil palestinos, segundo cálculos subestimados, e do desespero cotidiano dos sobreviventes submetidos ao racionamento de água, comida e remédios, confinados em um campo de concentração a céu aberto, o Hamas se viu em um beco sem saída. Netanyahu e a ala de extrema-direita que o apoia, por sua vez, estavam sob pressão crescente de aliados ocidentais, cada vez mais incomodados com os crimes de guerra em curso no enclave, e dos próprios eleitores, ansiosos pela volta dos reféns.

As negociações no balneário de Sharm el-Sheikh, no Egito, duraram dois dias. A chegada de Steve Witkoff, enviado da Casa Branca para Oriente Médio, Jared ­Kushner, genro do presidente e um dos elaboradores do plano, e Ron Dermer, principal conselheiro de Netanyahu, na quarta-feira 8 foi o prenúncio de um desfecho iminente e positivo das conversas. Na noite do mesmo dia, Trump anunciou os termos iniciais do acordo. O Hamas se compromete a libertar 20 reféns ainda vivos na primeira fase, em troca de 2 mil prisioneiros palestinos em poder de ­Israel, 250 dos quais condenados à prisão perpétua, e 1,7 mil detidos durante a invasão ao enclave. As ruas de várias cidades israelenses e em Gaza foram tomadas por celebrações. “Não sou o único feliz, toda a faixa está feliz, todo o povo árabe, todo mundo está feliz com o cessar-fogo e o fim do derramamento de sangue”, afirmou à agência de notícias Reuters ­Abdul Majeed­ Abd Rabbo, morador de Khan Younis, uma das localidades palestinas mais arrasadas pelos ataques israelitas. Tel-Aviv também concordou em iniciar a retirada das tropas e a permitir a entrada de ajuda humanitária. Quando? Depende da aprovação dos demais integrantes do governo. “Ao contrário dos relatos da mídia árabe, a contagem regressiva de 72 horas começará somente após o acordo ser aprovado na reunião de gabinete”, afirmou Netanyahu, em uma tentativa de demonstrar algum controle da situação.

Hamas e Israel trocaram uma lista de reféns em meio às conversas no Egito

Trata-se de um começo alvissareiro para um cessar-fogo de longo prazo, após sucessivos fracassos, mas o problema continua a ser o meio e o fim do acordo. Para Shawan Jabarin, diretor da Al-Haq, organização palestina de direitos humanos, o problema central do que ele chama de “ultimato de Trump aos palestinos” é que ele “condiciona a suspensão dos contínuos­ ataques genocidas de Israel e o extermínio em massa dos palestinos em Gaza a um conjunto de termos unilaterais ditados pelos Estados Unidos”. De fato, na ocasião do anúncio do plano, feito ao lado de Netanyahu após uma reunião na Casa Branca, o presidente norte-americano afirmou que, caso o grupo palestino não aceitasse o acordo, Israel teria “total apoio para acabar com o trabalho de destruir a ameaça”. Condicionar a entrada de ajuda humanitária à aceitação dos termos, prossegue Jabarin, é um prêmio à ilegalidade sem limites cometida por Israel. O ativista refere-se aos itens 7 e 8 do documento de 20 pontos, segundo os quais a entrada imediata de ajuda humanitária será coordenada por agências internacionais logo após a assinatura do acordo.

A questão mais controversa da proposta continua a ser o mapa da retirada do exército israelense, que atualmente controla 82% de Gaza, sob zonas militares e ordens de evacuação. No item 16 do documento, a saída é subordinada a “marcos ligados à desmilitarização” dos grupos palestinos, definidos em conjunto por Israel, a Força Internacional de Segurança que vier a ser formada e os países garantidores do acordo. Khalil al-Hayya, representante do Hamas­ no Egito e um dos sobreviventes do ataque israelense a um prédio em Doha, no mês passado, afirma que o grupo mantém a exigência de retirada completa dos soldados judeus, o que incluiria a zona do perímetro, uma faixa na fronteira de Gaza criada por Israel, e do Corredor Philadelphi, na divisa com o Egito. Seja para agradar ao público extremista interno, seja para complicar as negociações, Netanyahu tem declarado estar fora de cogitação a retirada total das Forças Armadas do território.

De acordo com a rede de tevê Al ­Jazeera, baseada em informações de oficiais do ­Hamas, os debates principais na terça-feira 7 giraram em torno da libertação dos reféns israelenses ainda em poder do grupo e a retirada do exército israelense. O Hamas tenta vincular a devolução de reféns às etapas de desmilitarização do território. Dessa maneira, o último sequestrado seria devolvido quando o último soldado deixasse o enclave. Isso pode ser um problema, pois o item 4 do plano determina que “dentro de 72 horas depois de Israel publicamente aceitar o acordo, todos os reféns, vivos e mortos, serão devolvidos”. Não só. Trump deseja criar um momento épico de libertação de todos os reféns, uma fotografia para projetar a imagem de líder “pacifista” e reforçar sua campanha particular – e obsessiva – pelo Prêmio Nobel da Paz. Dará tempo? O vencedor ou os vencedores da premiação seriam anunciados na sexta-feira 10, depois do fechamento desta edição.

Os protestos contra o genocídio cometido por Israel espalham-se pelo mundo. Blair foi um dos articuladores do plano
de reconstrução de Gaza, um negócio das Arábias – Imagem: Fabrice Coffrini/AFP, Javi Julio/Anadolu/AFP, Andrea Ronchini/NurPhoto/AFP, Nicolas Economou/NurPhoto/AFP e Ramon Van Flymen/AFP

O cronograma de retirada das tropas era um impasse esperado nas discussões, principalmente depois da revelação de que o item 16 do plano havia sido ajustado por imposição de Netanyahu, uma alteração feita sem o conhecimento das lideranças árabes que tinham concordado em apoiar os termos anteriores apresentados pelo presidente dos EUA durante uma reunião privada na Assembleia-Geral da ONU. A mudança deu a Tel-Aviv o poder de se negar, de forma unilateral, a desmilitarizar o território caso constate, segundo seus critérios, que as ameaças não tenham cessado.

Se olhassem para o passado, os negociadores de agora perceberiam que a estratégia de dar vantagem a um dos lados, em geral a Israel, foi testada e fracassou. Em 1993, no famoso Acordo de Oslo, prevaleceu a fórmula “terra por paz”, ou seja, os israelenses retirariam exército e colonos gradualmente dos territórios ocupados à medida que os palestinos garantissem a segurança aos israelenses. Em outras palavras, feito o desmonte de qualquer tipo de resistência às arbitrariedades de Tel-Aviv. Deu-se o contrário. Com o enfraquecimento dos “inimigos”, Israel­ ampliou a ocupação e transformou em permanente o que era temporário. Ainda assim, os mediadores árabes e islâmicos, ­Catar, Egito e Turquia, insistiram para o Hamas aceitar o plano. Os líderes desses países teriam dito ao grupo tratar-se da última chance de um acordo. “Você não pode rejeitar um acordo com Trump, não importa o quanto esteja insatisfeito com alguns de seus termos”, resumiu, de forma anônima, um dos negociadores.

O Acordo de Oslo é ilustrativo da prevalência da retórica sobre a realidade. O tratado assinado na capital da Noruega foi recebido com entusiasmo semelhante ao plano de Trump. As três figuras centrais das negociações, Yitzhak Rabin, primeiro-ministro israelense, Shimon Peres, chanceler do país, e Yasser Arafat, presidente da Organização para a Libertação da Palestina, foram agraciados com o Nobel da Paz (talvez esse fato explique a obsessão do atual presidente dos EUA). A paz, de fato, nunca saiu do papel. Em 2001, a respeito do acordo, o longevo Netanyahu, responsável agora por cumprir o novo acerto, declarou: “Perguntaram-me antes da eleição se eu honraria… Eu disse que sim, mas que interpretaria os acordos de tal forma que me permitisse pôr fim a esse galope em direção às fronteiras de 1967. Como fizemos isso? Ninguém disse o que eram zonas militares definidas. Zonas militares definidas são zonas de segurança. No que me diz respeito, todo o Vale do Jordão é uma zona militar definida”.

Jared Kushner, genro de Trump, é crucial no plano de reconstrução de Gaza, que vai movimentar bilhões de dólares

O sinal verde dado pelos países árabes e pela Turquia foram, de qualquer maneira, um trunfo do presidente dos Estados Unidos. “Eu falei com o presidente Erdogan­, ele é fantástico”, afirmou o republicano, sem perder a paixão por superlativos. “Ele está forçando bastante, ele é um cara poderoso. O Hamas tem muito respeito por ele. Eles têm muito respeito pelo Catar, pelos Emirados Árabes e pela Arábia ­Saudita”. O grupo palestino parece, no entanto, ter captado o espírito do plano norte-americano. Em entrevista ao Drop Site News, uma liderança do Hamas resumiu: “Essa proposta não foi apresentada para encontrar um fim para a guerra. Ou é a rendição total ou a continuação da guerra. É pegar ou largar”. A direção considera os termos “catastróficos, no curto e longo prazo, para a resistência e para toda a causa palestina”, mas sabe que a tragédia humanitária erodiu o apoio popular interno e o poder de influência nas conversas diplomáticas. Restavam duas alternativas: ou a entrega das armas ou assistir ao extermínio do que resta de palestinos em Gaza.

Apesar do horizonte político pouco promissor para a população local, o plano de Trump contraria em certa medida os radicais de direita de Israel, entre eles ­Bezalel Smotrich, ministro das Finanças, cujo intuito era ocupar o enclave de forma definitiva depois de concluída a limpeza étnica. Trump estava inclinado a apoiar essa ideia, mas acabou convencido do contrário em uma reunião, no fim de agosto, da qual participaram Kushner, Witkoff e Tony Blair, ex-primeiro-ministro britânico cotado para liderar a administração tecnocrática de reconstrução de Gaza. O trio convenceu o presidente dos EUA de que a expulsão em massa de palestinos “não era necessária nem sábia”. E sugeriram ao republicano investir nas relações com os demais países do Oriente Médio em busca de uma solução para o conflito. O ataque israelense a um prédio em Doha em 9 de setembro, em uma caçada a lideranças do Hamas, criticada pela Casa Branca, afastou um pouco mais Trump de Netanyahu. Como resposta, a Casa Branca ofereceu um mimo aos cataris, por meio da ordem executiva “Assegurando a Segurança do Estado do Catar”, que inclui ação militar para proteger a integridade territorial do país no caso de ataque estrangeiro.

Greta Thunberg foi presa e deportada por Israel – Imagem: Lluis Gene/AFP

Não menos importante, há o fator Kushner na dinâmica do esforço diplomático. O genro de Trump esteve ligado à formulação, ao lado de Blair, do “Fundo de Reconstituição, Aceleração Econômica e Transformação de Gaza (GREAT, na sigla em inglês), que circulou entre políticos no primeiro semestre do ano. Em linhas gerais, o GREAT (acrônimo típico da grandilo­quência trumpiana) apontava os “benefícios estratégicos” para os EUA da tomada de Gaza: “Ganhos massivos de dólares, acelerar o IMEC (Corredor Índia–Oriente Médio–Europa, rota dos EUA para competir com a China), solidificar a arquitetura regional abraâmica (normalização da relação de países árabes com Israel), fortalecer o punho sobre o Mediterrâneo oriental e assegurar à indústria dos EUA o acesso a 1,3 bilhão de dólares em terras-raras do Golfo”. Kushner mantém fortes ligações com o fundo público de investimento do governo da Arábia Saudita. No mesmo dia do anúncio do “plano de paz”, ele divulgou a compra da Electronic Arts, empresa desenvolvedora de videogames, por 55 bilhões de dólares, por meio de sua companhia, a Affinity Partners, em sociedade com o fundo Silver Lake e o FPS. A vida dupla de investidor e diplomata tem rendido acusações de conflito de interesse ao genro de Trump. O senador democrata Ron Wyden, de acordo com o Le Monde, já perguntou a Kushner sobre o recebimento de polpudos depósitos do fundo saudita.

Além dos interesses familiares e da obsessão pelo Nobel da Paz, interferir no conflito entre Israel e a Palestina ecoa a estratégia de Trump condensada no chamado “Projeto 2025”, que norteou sua campanha presidencial. O capítulo “Departamento de Estado”, de autoria de Kiron Skinner, integrante dos Institutos Hover e Heritage, centros do pensamento reacionário, e ex-diretora de Planejamento de Políticas no primeiro governo do magnata, afirma que, em um escopo maior, “os EUA devem impedir o Irã de adquirir tecnologia nuclear e capacidade de lançamento (da bomba), e, mais amplamente, bloquear as ambições iranianas”. Entre as sugestões, além da reinstituição das sanções, estão “prover assistência de segurança para parceiros regionais” e “assegurar que Israel tenha tanto os meios militares quanto o apoio político e a flexibilidade para tomar as medidas que acreditar necessárias para se defender do regime iraniano e de seus proxies regionais, como Hamas, Hezbollah e a Jihad Islâmica Palestina”. A sugestão de Skinner tornou-se uma profecia autorrealizada, pois a pressão de Trump sobre o Irã chegou ao ponto de um ataque coordenado com Israel, incluindo a tentativa de decapitar a liderança militar e destruir usinas nucleares. Outro elemento estratégico para os EUA, e Israel, é retomar os Acordos de Abrãao, interrompidos em outubro de 2023, mas que poderiam ser reavivados a partir do consenso regional formado em caso de um eventual sucesso do plano de cessar-fogo.

Mesmo entre os judeus dos EUA o apoio a Israel é declinante

O isolamento crescente de Netanyahu facilitou as negociações. Até mesmo a Casa Branca, parceira incondicional, demonstrou algum grau de irritação. No domingo 5, antes do início das negociações e por conta de uma certa ambivalência do primeiro-ministro israelense, o presidente dos Estados Unidos passou uma carraspana no aliado, segundo relatos do site Axios. “Eu não sei por que você é sempre tão (­fucking) negativo… Isto é uma vitória.” Completados dois anos de um massacre que, até o momento, de acordo com dados do Escritório da ONU para Assuntos Humanitários, matou 66.148 palestinos (total que pode crescer quando corpos forem retirados dos escombros), entre eles 18.430 crianças, destruiu 92% das casas e submeteu os sobreviventes a altos níveis de insegurança alimentar, a imagem de Israel no mundo só tem piorado. Pesquisa recente do Instituto Pew Research mostra que 39% dos norte-americanos acreditam que os israelenses “foram longe demais”. No fim de 2023, a porcentagem era de 27%. Já o número daqueles com “opinião desfavorável do governo” de Tel-Aviv subiu de 51%, no começo de 2024, para 59%. Entre os judeus norte-americanos, 61% dizem que Israel cometeu crimes de guerra contra os palestinos. E quatro em cada dez dizem que o ­país comete genocídio contra os palestinos.

A truculência com os integrantes da flotilha humanitária que rumava a ­Gaza isolou ainda mais o país. A tomada dos barcos por soldados israelenses e os relatos de maus-tratos a quem estava armado de comida, água e cobertores desencadearam protestos massivos ao redor do mundo. Em Roma, 250 mil italianos ocuparam as ruas por quatro dias, além de fechar portos e estações de trem. Sindicatos decretaram greves sob o lema “Bloquearemos tudo até que Gaza esteja livre”. Em Amsterdã, número semelhante inundou o centro da capital holandesa no domingo 5. Em Barcelona, cerca de 70 mil catalães clamaram pelo “boicote a Israel” e pelo “fim do bloqueio”. As tropas israelenses fizeram ouvidos moucos. Enquanto as reuniões no Egito buscavam um consenso, mais de 70 palestinos foram mortos entre a segunda-feira 6 e a quarta 8. Bombardeios foram registrados na quinta 9, antes de o gabinete de ­Netanyahu se reunir para dar aval ao cessar-fogo. •

Publicado na edição n° 1383 de CartaCapital, em 15 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Paz sem voz’

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