CartaCapital
Paz sem voz
Os palestinos serão privados de suas escolhas, mas os negócios têm tudo para prosperar


Exatos dois anos depois do ignominioso atentado do Hamas que deixou um rastro de 1,2 mil judeus mortos e foi o estopim para uma vingança selvagem de Israel, elevada ao patamar de genocídio, conforme as conclusões recentes dos especialistas a serviço das Nações Unidas, um cessar-fogo na Faixa de Gaza foi anunciado na noite da quarta-feira 8 pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, principal fiador das negociações. Embora os termos do acordo de longo prazo apresentado pelo republicano favoreçam, sem nenhum pudor, o aliado Benjamin Netanyahu e continuem absolutamente vagos, as circunstâncias dificultaram qualquer tentativa de sabotagem das partes envolvidas. Diante do cenário de terra arrasada, da morte de quase 70 mil palestinos, segundo cálculos subestimados, e do desespero cotidiano dos sobreviventes submetidos ao racionamento de água, comida e remédios, confinados em um campo de concentração a céu aberto, o Hamas se viu em um beco sem saída. Netanyahu e a ala de extrema-direita que o apoia, por sua vez, estavam sob pressão crescente de aliados ocidentais, cada vez mais incomodados com os crimes de guerra em curso no enclave, e dos próprios eleitores, ansiosos pela volta dos reféns.
As negociações no balneário de Sharm el-Sheikh, no Egito, duraram dois dias. A chegada de Steve Witkoff, enviado da Casa Branca para Oriente Médio, Jared Kushner, genro do presidente e um dos elaboradores do plano, e Ron Dermer, principal conselheiro de Netanyahu, na quarta-feira 8 foi o prenúncio de um desfecho iminente e positivo das conversas. Na noite do mesmo dia, Trump anunciou os termos iniciais do acordo. O Hamas se compromete a libertar 20 reféns ainda vivos na primeira fase, em troca de 2 mil prisioneiros palestinos em poder de Israel, 250 dos quais condenados à prisão perpétua, e 1,7 mil detidos durante a invasão ao enclave. As ruas de várias cidades israelenses e em Gaza foram tomadas por celebrações. “Não sou o único feliz, toda a faixa está feliz, todo o povo árabe, todo mundo está feliz com o cessar-fogo e o fim do derramamento de sangue”, afirmou à agência de notícias Reuters Abdul Majeed Abd Rabbo, morador de Khan Younis, uma das localidades palestinas mais arrasadas pelos ataques israelitas. Tel-Aviv também concordou em iniciar a retirada das tropas e a permitir a entrada de ajuda humanitária. Quando? Depende da aprovação dos demais integrantes do governo. “Ao contrário dos relatos da mídia árabe, a contagem regressiva de 72 horas começará somente após o acordo ser aprovado na reunião de gabinete”, afirmou Netanyahu, em uma tentativa de demonstrar algum controle da situação.
Hamas e Israel trocaram uma lista de reféns em meio às conversas no Egito
Trata-se de um começo alvissareiro para um cessar-fogo de longo prazo, após sucessivos fracassos, mas o problema continua a ser o meio e o fim do acordo. Para Shawan Jabarin, diretor da Al-Haq, organização palestina de direitos humanos, o problema central do que ele chama de “ultimato de Trump aos palestinos” é que ele “condiciona a suspensão dos contínuos ataques genocidas de Israel e o extermínio em massa dos palestinos em Gaza a um conjunto de termos unilaterais ditados pelos Estados Unidos”. De fato, na ocasião do anúncio do plano, feito ao lado de Netanyahu após uma reunião na Casa Branca, o presidente norte-americano afirmou que, caso o grupo palestino não aceitasse o acordo, Israel teria “total apoio para acabar com o trabalho de destruir a ameaça”. Condicionar a entrada de ajuda humanitária à aceitação dos termos, prossegue Jabarin, é um prêmio à ilegalidade sem limites cometida por Israel. O ativista refere-se aos itens 7 e 8 do documento de 20 pontos, segundo os quais a entrada imediata de ajuda humanitária será coordenada por agências internacionais logo após a assinatura do acordo.
A questão mais controversa da proposta continua a ser o mapa da retirada do exército israelense, que atualmente controla 82% de Gaza, sob zonas militares e ordens de evacuação. No item 16 do documento, a saída é subordinada a “marcos ligados à desmilitarização” dos grupos palestinos, definidos em conjunto por Israel, a Força Internacional de Segurança que vier a ser formada e os países garantidores do acordo. Khalil al-Hayya, representante do Hamas no Egito e um dos sobreviventes do ataque israelense a um prédio em Doha, no mês passado, afirma que o grupo mantém a exigência de retirada completa dos soldados judeus, o que incluiria a zona do perímetro, uma faixa na fronteira de Gaza criada por Israel, e do Corredor Philadelphi, na divisa com o Egito. Seja para agradar ao público extremista interno, seja para complicar as negociações, Netanyahu tem declarado estar fora de cogitação a retirada total das Forças Armadas do território.
De acordo com a rede de tevê Al Jazeera, baseada em informações de oficiais do Hamas, os debates principais na terça-feira 7 giraram em torno da libertação dos reféns israelenses ainda em poder do grupo e a retirada do exército israelense. O Hamas tenta vincular a devolução de reféns às etapas de desmilitarização do território. Dessa maneira, o último sequestrado seria devolvido quando o último soldado deixasse o enclave. Isso pode ser um problema, pois o item 4 do plano determina que “dentro de 72 horas depois de Israel publicamente aceitar o acordo, todos os reféns, vivos e mortos, serão devolvidos”. Não só. Trump deseja criar um momento épico de libertação de todos os reféns, uma fotografia para projetar a imagem de líder “pacifista” e reforçar sua campanha particular – e obsessiva – pelo Prêmio Nobel da Paz. Dará tempo? O vencedor ou os vencedores da premiação seriam anunciados na sexta-feira 10, depois do fechamento desta edição.
Os protestos contra o genocídio cometido por Israel espalham-se pelo mundo. Blair foi um dos articuladores do plano
de reconstrução de Gaza, um negócio das Arábias – Imagem: Fabrice Coffrini/AFP, Javi Julio/Anadolu/AFP, Andrea Ronchini/NurPhoto/AFP, Nicolas Economou/NurPhoto/AFP e Ramon Van Flymen/AFP
O cronograma de retirada das tropas era um impasse esperado nas discussões, principalmente depois da revelação de que o item 16 do plano havia sido ajustado por imposição de Netanyahu, uma alteração feita sem o conhecimento das lideranças árabes que tinham concordado em apoiar os termos anteriores apresentados pelo presidente dos EUA durante uma reunião privada na Assembleia-Geral da ONU. A mudança deu a Tel-Aviv o poder de se negar, de forma unilateral, a desmilitarizar o território caso constate, segundo seus critérios, que as ameaças não tenham cessado.
Se olhassem para o passado, os negociadores de agora perceberiam que a estratégia de dar vantagem a um dos lados, em geral a Israel, foi testada e fracassou. Em 1993, no famoso Acordo de Oslo, prevaleceu a fórmula “terra por paz”, ou seja, os israelenses retirariam exército e colonos gradualmente dos territórios ocupados à medida que os palestinos garantissem a segurança aos israelenses. Em outras palavras, feito o desmonte de qualquer tipo de resistência às arbitrariedades de Tel-Aviv. Deu-se o contrário. Com o enfraquecimento dos “inimigos”, Israel ampliou a ocupação e transformou em permanente o que era temporário. Ainda assim, os mediadores árabes e islâmicos, Catar, Egito e Turquia, insistiram para o Hamas aceitar o plano. Os líderes desses países teriam dito ao grupo tratar-se da última chance de um acordo. “Você não pode rejeitar um acordo com Trump, não importa o quanto esteja insatisfeito com alguns de seus termos”, resumiu, de forma anônima, um dos negociadores.
O Acordo de Oslo é ilustrativo da prevalência da retórica sobre a realidade. O tratado assinado na capital da Noruega foi recebido com entusiasmo semelhante ao plano de Trump. As três figuras centrais das negociações, Yitzhak Rabin, primeiro-ministro israelense, Shimon Peres, chanceler do país, e Yasser Arafat, presidente da Organização para a Libertação da Palestina, foram agraciados com o Nobel da Paz (talvez esse fato explique a obsessão do atual presidente dos EUA). A paz, de fato, nunca saiu do papel. Em 2001, a respeito do acordo, o longevo Netanyahu, responsável agora por cumprir o novo acerto, declarou: “Perguntaram-me antes da eleição se eu honraria… Eu disse que sim, mas que interpretaria os acordos de tal forma que me permitisse pôr fim a esse galope em direção às fronteiras de 1967. Como fizemos isso? Ninguém disse o que eram zonas militares definidas. Zonas militares definidas são zonas de segurança. No que me diz respeito, todo o Vale do Jordão é uma zona militar definida”.
Jared Kushner, genro de Trump, é crucial no plano de reconstrução de Gaza, que vai movimentar bilhões de dólares
O sinal verde dado pelos países árabes e pela Turquia foram, de qualquer maneira, um trunfo do presidente dos Estados Unidos. “Eu falei com o presidente Erdogan, ele é fantástico”, afirmou o republicano, sem perder a paixão por superlativos. “Ele está forçando bastante, ele é um cara poderoso. O Hamas tem muito respeito por ele. Eles têm muito respeito pelo Catar, pelos Emirados Árabes e pela Arábia Saudita”. O grupo palestino parece, no entanto, ter captado o espírito do plano norte-americano. Em entrevista ao Drop Site News, uma liderança do Hamas resumiu: “Essa proposta não foi apresentada para encontrar um fim para a guerra. Ou é a rendição total ou a continuação da guerra. É pegar ou largar”. A direção considera os termos “catastróficos, no curto e longo prazo, para a resistência e para toda a causa palestina”, mas sabe que a tragédia humanitária erodiu o apoio popular interno e o poder de influência nas conversas diplomáticas. Restavam duas alternativas: ou a entrega das armas ou assistir ao extermínio do que resta de palestinos em Gaza.
Apesar do horizonte político pouco promissor para a população local, o plano de Trump contraria em certa medida os radicais de direita de Israel, entre eles Bezalel Smotrich, ministro das Finanças, cujo intuito era ocupar o enclave de forma definitiva depois de concluída a limpeza étnica. Trump estava inclinado a apoiar essa ideia, mas acabou convencido do contrário em uma reunião, no fim de agosto, da qual participaram Kushner, Witkoff e Tony Blair, ex-primeiro-ministro britânico cotado para liderar a administração tecnocrática de reconstrução de Gaza. O trio convenceu o presidente dos EUA de que a expulsão em massa de palestinos “não era necessária nem sábia”. E sugeriram ao republicano investir nas relações com os demais países do Oriente Médio em busca de uma solução para o conflito. O ataque israelense a um prédio em Doha em 9 de setembro, em uma caçada a lideranças do Hamas, criticada pela Casa Branca, afastou um pouco mais Trump de Netanyahu. Como resposta, a Casa Branca ofereceu um mimo aos cataris, por meio da ordem executiva “Assegurando a Segurança do Estado do Catar”, que inclui ação militar para proteger a integridade territorial do país no caso de ataque estrangeiro.
Greta Thunberg foi presa e deportada por Israel – Imagem: Lluis Gene/AFP
Não menos importante, há o fator Kushner na dinâmica do esforço diplomático. O genro de Trump esteve ligado à formulação, ao lado de Blair, do “Fundo de Reconstituição, Aceleração Econômica e Transformação de Gaza (GREAT, na sigla em inglês), que circulou entre políticos no primeiro semestre do ano. Em linhas gerais, o GREAT (acrônimo típico da grandiloquência trumpiana) apontava os “benefícios estratégicos” para os EUA da tomada de Gaza: “Ganhos massivos de dólares, acelerar o IMEC (Corredor Índia–Oriente Médio–Europa, rota dos EUA para competir com a China), solidificar a arquitetura regional abraâmica (normalização da relação de países árabes com Israel), fortalecer o punho sobre o Mediterrâneo oriental e assegurar à indústria dos EUA o acesso a 1,3 bilhão de dólares em terras-raras do Golfo”. Kushner mantém fortes ligações com o fundo público de investimento do governo da Arábia Saudita. No mesmo dia do anúncio do “plano de paz”, ele divulgou a compra da Electronic Arts, empresa desenvolvedora de videogames, por 55 bilhões de dólares, por meio de sua companhia, a Affinity Partners, em sociedade com o fundo Silver Lake e o FPS. A vida dupla de investidor e diplomata tem rendido acusações de conflito de interesse ao genro de Trump. O senador democrata Ron Wyden, de acordo com o Le Monde, já perguntou a Kushner sobre o recebimento de polpudos depósitos do fundo saudita.
Além dos interesses familiares e da obsessão pelo Nobel da Paz, interferir no conflito entre Israel e a Palestina ecoa a estratégia de Trump condensada no chamado “Projeto 2025”, que norteou sua campanha presidencial. O capítulo “Departamento de Estado”, de autoria de Kiron Skinner, integrante dos Institutos Hover e Heritage, centros do pensamento reacionário, e ex-diretora de Planejamento de Políticas no primeiro governo do magnata, afirma que, em um escopo maior, “os EUA devem impedir o Irã de adquirir tecnologia nuclear e capacidade de lançamento (da bomba), e, mais amplamente, bloquear as ambições iranianas”. Entre as sugestões, além da reinstituição das sanções, estão “prover assistência de segurança para parceiros regionais” e “assegurar que Israel tenha tanto os meios militares quanto o apoio político e a flexibilidade para tomar as medidas que acreditar necessárias para se defender do regime iraniano e de seus proxies regionais, como Hamas, Hezbollah e a Jihad Islâmica Palestina”. A sugestão de Skinner tornou-se uma profecia autorrealizada, pois a pressão de Trump sobre o Irã chegou ao ponto de um ataque coordenado com Israel, incluindo a tentativa de decapitar a liderança militar e destruir usinas nucleares. Outro elemento estratégico para os EUA, e Israel, é retomar os Acordos de Abrãao, interrompidos em outubro de 2023, mas que poderiam ser reavivados a partir do consenso regional formado em caso de um eventual sucesso do plano de cessar-fogo.
Mesmo entre os judeus dos EUA o apoio a Israel é declinante
O isolamento crescente de Netanyahu facilitou as negociações. Até mesmo a Casa Branca, parceira incondicional, demonstrou algum grau de irritação. No domingo 5, antes do início das negociações e por conta de uma certa ambivalência do primeiro-ministro israelense, o presidente dos Estados Unidos passou uma carraspana no aliado, segundo relatos do site Axios. “Eu não sei por que você é sempre tão (fucking) negativo… Isto é uma vitória.” Completados dois anos de um massacre que, até o momento, de acordo com dados do Escritório da ONU para Assuntos Humanitários, matou 66.148 palestinos (total que pode crescer quando corpos forem retirados dos escombros), entre eles 18.430 crianças, destruiu 92% das casas e submeteu os sobreviventes a altos níveis de insegurança alimentar, a imagem de Israel no mundo só tem piorado. Pesquisa recente do Instituto Pew Research mostra que 39% dos norte-americanos acreditam que os israelenses “foram longe demais”. No fim de 2023, a porcentagem era de 27%. Já o número daqueles com “opinião desfavorável do governo” de Tel-Aviv subiu de 51%, no começo de 2024, para 59%. Entre os judeus norte-americanos, 61% dizem que Israel cometeu crimes de guerra contra os palestinos. E quatro em cada dez dizem que o país comete genocídio contra os palestinos.
A truculência com os integrantes da flotilha humanitária que rumava a Gaza isolou ainda mais o país. A tomada dos barcos por soldados israelenses e os relatos de maus-tratos a quem estava armado de comida, água e cobertores desencadearam protestos massivos ao redor do mundo. Em Roma, 250 mil italianos ocuparam as ruas por quatro dias, além de fechar portos e estações de trem. Sindicatos decretaram greves sob o lema “Bloquearemos tudo até que Gaza esteja livre”. Em Amsterdã, número semelhante inundou o centro da capital holandesa no domingo 5. Em Barcelona, cerca de 70 mil catalães clamaram pelo “boicote a Israel” e pelo “fim do bloqueio”. As tropas israelenses fizeram ouvidos moucos. Enquanto as reuniões no Egito buscavam um consenso, mais de 70 palestinos foram mortos entre a segunda-feira 6 e a quarta 8. Bombardeios foram registrados na quinta 9, antes de o gabinete de Netanyahu se reunir para dar aval ao cessar-fogo. •
Publicado na edição n° 1383 de CartaCapital, em 15 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Paz sem voz’
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