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A verdade em cartório

Atestados de óbito retificados corrigem informações sobre tripla execução e outros crimes da ditadura

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Farsa. Executados por agentes da repressão, Voeroes e Reyes, ligados à Molipo, foram acusados de um assassinato que não cometeram – Imagem: Arquivo DOI-Codi, Acervo Pessoal e Redes Sociais
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Na quarta-feira 8, uma nova solenidade em São Paulo marcou a entrega de certidões de óbitos retificadas de mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura. Após um lote inicial emitido em agosto, a segunda leva corrige os atestados de Carlos ­Marighella, Rubens Paiva, Vladimir ­Herzog e outras cem vítimas da repressão estatal, com os dizeres sobre a causa da morte: “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”.

A reparação histórica contempla dezenas de casos de ex-estudantes e professores da USP, e inclui um episódio pouco conhecido – uma tripla execução – relacionado tanto à universidade quanto à Ação Libertadora Nacional, a ALN, organização revolucionária criada por Marighella. Em 27 de fevereiro de 1972, os estudantes e militantes Lauriberto José Reyes e ­Alexander José Ibsen Voeroes foram executados, ao lado do servidor público aposentado Napoleão Felipe Biscaldi, por agentes do DOI–Codi na Rua Serra de Botucatu, no bairro paulistano do Tatuapé.

A versão oficial divulgada à época informava que os dois militantes teriam sido mortos em intenso confronto armado com as forças de segurança do Estado. Em 29 de fevereiro daquele ano, a ­Folha de S.Paulo noticiou que os “terroristas” foram responsáveis pelo tiro que levou Biscaldi, de 61 anos, à morte. Curiosamente, os laudos emitidos pelo Instituto Médico Legal sobre as mortes dos três registravam a letra “T”, código usado pelos órgãos de repressão para classificar as vítimas como supostos terroristas. “Eles não estavam armados”, afirmou Adalberto Barreiro, testemunha do crime e ainda morador do local. Reticente a princípio, pois “havia prestado depoimentos à Polícia Federal uns anos atrás”, Barreiro relatou à reportagem que tinha 12 anos quando presenciou a execução. “Lembro que estava assistindo à tevê num domingo à tarde, quando escutei rajadas de tiros. Corri para os fundos da minha casa, que dava para a (rua) Serra de Botucatu, e vi um rapaz tentando correr e mancando de uma perna”.

O rapaz era Lauriberto Reyes, de 26 anos, que desistiu de entrar no carro ao ser alvejado nas costas e tentou fugir a pé. “Parecia uma cena de guerra, com direito a tripé de metralhadora”, descreveu Barreiro. “Os policiais montaram um cerco em duas quadras e fizeram campana num bar da esquina. Um Opala claro seguiu o rapaz que mancava, e um policial, com o corpo para fora do carro, gritava ‘morre terrorista’, enquanto atirava com a metralhadora. Antes de fuzilar o rapaz, ele atingiu meu vizinho, o Seu Napoleão, que fora buscar o filho pequeno no campinho de futebol do outro lado da rua. A bala o atingiu no pescoço e saiu pela cabeça.”

Biscaldi morreu em frente à sua casa e seu corpo ficou por cinco horas na rua antes de ser recolhido pelo IML. Reyes, já sem vida, foi posto no porta-malas do carro dos agentes e levado imediatamente, juntamente com o corpo de Voeroes, de 19 anos. “O outro jovem, que trajava short, morreu na quadra anterior, onde ainda hoje existe um ponto de ônibus”, rememora Barreiro, que ainda se recorda de ter visto uma “moça japonesa” presa no banco de trás do carro dos policiais.

As declarações de Barreiro reproduzem parte das informações levantadas por dois integrantes da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, Ivan Seixas e Amelinha Teles, que estiveram no local do crime, em 1997, quando conversaram com a testemunha e outros vizinhos. Ao examinar os documentos e algumas contradições entre as informações divulgadas nos jornais da época, o relator da comissão, Nilmário Miranda, passou a considerar a hipótese de execução e solicitou um exame mais detalhado. Os dados apurados serviram para uma investigação sobre o caso conduzida pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, em 2014. As apurações constataram que o chefe da operação em 1972 era o torturador e agente do DOI–Codi Dirceu Gravina, vulgo J.C. ou Jesus Cristo. “Ele usava cavanhaque, cabelo comprido e um crucifixo. Por isso ganhou o nome”, descreveu Seixas.

O aposentado Napoleão Biscaldi foi morto pela repressão, não por “terroristas”

Nascido na paulista São Carlos em 1945, Reyes ingressou na Escola Politécnica da USP em 1965 e passou a morar no Crusp, o alojamento estudantil da universidade, do qual foi diretor cultural. Em 1968, participou do I Festival Universitário da Música Popular, da TV Tupi, com a música Torrão, defendida por Renato Teixeira. Integrou a direção-executiva da União Nacional dos Estudantes e foi um dos organizadores do 30º Congresso da entidade em Ibiúna, em 1968, quando cerca de 800 alunos foram presos. No dia seguinte à sua prisão, seu pai faleceu ao ser atropelado pelo carro de um delegado de polícia a caminho de um protesto de estudantes.

Engajado politicamente, Lauri, como era chamado, militou na Dissidência Estudantil do PCB de São Paulo até a formação da ALN. A morte de Marighella em 4 de novembro de 1969, fez com que ele e outros oito militantes da organização antecipassem um plano e sequestrassem um avião da Varig durante o trajeto Buenos Aires–Santiago, desviando-o para Cuba. Na ilha, participou de treinamento de guerrilha e, em setembro de 1971, retornou ao Brasil como militante do Molipo.

Seu colega no Molipo, Voeroes tinha ascendência chilena e húngara, mas morava desde os 2 meses de idade no Brasil. Aluno do Colégio de Aplicação, ganhou uma bolsa para cursar Biologia na USP, mas ingressou, antes, na ALN. Em fevereiro de 1972, os jornais noticiaram, falsamente, que Voeroes participara do assassinato do empresário Henning Boilesen­, presidente da Ultragaz e financiador da tortura no DOI–Codi.

Agente do DOI–Codi, Gravina ganhou prêmio em dinheiro pelas mortes de Reyes e Voeroes, segundo Seixas. O policial seguiu carreira como delegado da Polícia Civil e tornou-se professor de Direito na Unoeste, especializado em “ética em interrogatório”. Em 2022, acusado de tortura e mortes durante a ditadura, foi condenado a pagar indenização de 1 milhão de reais, a título de dano moral coletivo. Faleceu em 2023, aos 74 anos, em Presidente Prudente.

Reyes dá nome a uma praça e ao Centro da Juventude em São Carlos. Uma placa na praça reproduz a letra de Torrão. •

Publicado na edição n° 1383 de CartaCapital, em 15 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A verdade em cartório’

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