

Opinião
Da Barsa às fake news
Sem checagem de fonte ou conteúdo, as enciclopédias hoje na palma das nossas mãos trouxeram consigo uma avalanche de desinformação


Quando eu era criança, existia a enciclopédia Barsa. Era o sonho de consumo dos estudantes. Eu morava em um bairro pobre e meus pais, ambos professores, sempre priorizaram a educação como a maior herança que podiam nos deixar.
Me lembro do dia em que as caixas de livros chegaram: 12 volumes de capa vermelha decorada em dourado. Eu pensava que ali estava o resumo do conhecimento da humanidade.
Meus colegas do ensino público, com menos recursos financeiros, vinham estudar na minha casa. Passávamos tardes em pesquisas para os trabalhos escolares, e nos divertíamos aprendendo. Para uma informação ser incluída na Barsa, ela deveria ser comprovada por publicação científica e checada por vários revisores da enciclopédia.
A tecnologia trouxe todo o conhecimento instantaneamente às nossas mãos. Isso seria maravilhoso, mas, sem checagem de fonte ou conteúdo, a “Barsa” na palma da mão trouxe consigo uma avalanche de desinformação, com a difusão de ódio e negacionismo.
O negacionismo surgiu na Idade Média como uma reação às verdades científicas consideradas inconvenientes principalmente por questionar dogmas. Giordano Bruno, por volta de 1500, foi à fogueira por dizer que a Terra não era o centro do Universo e girava em torno do Sol, e que existiam outros mundos potencialmente habitáveis no universo infinito de sistemas solares semelhantes ao nosso.
Pensem: dividimos nossa existência, no século XXI, com pessoas que ainda acreditam que a Terra é plana. A disseminação de notícias falsas como ferramenta do negacionismo tem o objetivo de destruir o conhecimento histórico, ambiental e de saúde pública, entre outros.
A estratégia é oferecer uma visão distópica de um mundo sem leis, no qual nada pode ser dado como certo e ninguém pode ser confiável – uma mistura de dúvida corrosiva e credulidade cega. Tal técnica, desde a Idade Média, consegue convencer massas de incautos a cometerem loucuras em nome de teorias da conspiração.
A história está repleta de exemplos e, recentemente, vivemos episódios dessa natureza em nosso país. Isto é grave em todas as esferas do conhecimento, mas, quando o assunto é saúde, o negacionismo pode ter um impacto por toda a vida.
Basta pensarmos no mal que vem causando o movimento antivacina. Temos o risco de volta de doenças já erradicadas, como o sarampo e a pólio e de mortes por doenças evitáveis como meningite, influenza e Covid–19. Há, ainda, o risco de perdermos benefícios a longo prazo, como mostra um novo estudo da Universidade de Oxford, publicado na revista npj Vaccines (Nature).
Os pesquisadores analisaram mais de 430 mil pessoas nos EUA e constataram que a vacina Arexvy – contra o vírus sincicial respiratório (VSR), que causa bronquiolite – estava ligada a um risco significativamente menor de desenvolver demência. O Arexvy, agora oferecido a adultos com mais de 60 anos, contém o mesmo adjuvante que a vacina contra herpes-zóster – Shingrix.
Estudos recentes mostraram que as vacinas contra herpes-zóster também reduzem o risco de demência. O “adjuvante”, ingrediente projetado para potencializar a eficácia das vacinas, pode estar contribuindo para esse efeito. Ambas as vacinas foram igualmente eficazes na redução do risco de demência em comparação com aquela contra a gripe (que não contém o adjuvante).
Nos 18 meses seguintes à vacinação com Arexvy, verificou-se uma redução de 29% nos diagnósticos de demência. Essas descobertas se mantiveram verdadeiras em uma série de análises adicionais e foram semelhantes em homens e mulheres, e indicam que o adjuvante AS01 estimula as células do sistema imunológico, protegendo o cérebro do depósito da proteína amiloide, ligada à demência.
Esses benefícios podem ser adicionais à proteção que vem da prevenção de infecções graves como herpes-zóster e VSR. Ainda não se sabe se essas vacinas previnem a demência ou, mais provavelmente, retardam o seu início.
O autor principal do estudo, Maxime Taquet, professor do Departamento de Psiquiatria da Universidade de Oxford, disse: “Isso nos dá outro motivo para tomar as vacinas, além de sua eficácia na prevenção dessas doenças graves”.
Vacine-se, e vacine a mente contra o negacionismo. Informe-se com dados oficiais e confiáveis, cheque a informação em mais de uma fonte e não seja cúmplice replicando informações sem confirmação. Negacionismo adoece o corpo, a mente e a sociedade. •
Publicado na edição n° 1383 de CartaCapital, em 15 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Da Barsa às fake news’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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