

Opinião
Jardim infestado
É preciso obstinação para arrancar as ervas daninhas cultivadas por governos autoritários e disfarçadas sob uma aparência de legalidade


Um mecanismo ardiloso tem caracterizado os avanços do autoritarismo no século XXI. Em vez de se impor por meio de golpes clássicos, as novas formas de governos autoritários avançam sub-repticiamente por vias democráticas, à moda de ervas daninhas, minando disfarçadamente, sob uma aparência de legalidade, o pacto civilizatório dos Estados Democráticos de Direito.
As estratégias de movimentos autocráticos passam, muitas vezes, por medidas de exceção que desfavorecem grupos minoritários, sustentadas por argumentos que remetem a ideais de soberania nacional ou de competitividade econômica. Não se trata de regimes autoritários convencionais, mas de Estados estruturados por um conjunto de iniciativas que subtraem direitos sob a égide de uma suposta legitimidade. Nesse sentido, podemos conceituar um autoritarismo líquido, que se dilui nas rotinas democráticas, buscando uma naturalização que o palatalize.
No encaminhamento dessa lógica, é comum a nomeação de inimigos, desumanizados por meio da retórica. Nos quadrantes opressores do trumpismo, por exemplo, o tolhimento de direitos de imigrantes é justificado pelo discurso de combate à entrada ilegal no país e a supostos índices de criminalidade associados a estrangeiros não legalizados. Há, porém, denúncias de que mesmo aqueles com documentação regular também são detidos, hostilizados ou submetidos a diversos constrangimentos. Além disso, o mandatário estende sua justificativa à seara do protecionismo, alegando a necessidade de garantir o emprego dos trabalhadores estadunidenses, criando um falso e ignominioso “nós contra eles”.
Em determinados contextos, a supressão de direitos busca legitimação pelo viés do conservadorismo, como em países da Europa onde a extrema-direita tem conquistado cada vez mais adeptos. A ascensão de grupos dessa vertente na Itália firmou-se na defesa de valores familiares tradicionais, assumindo uma postura de antagonismo a conquistas da comunidade LGBTQIA+, como na medida que, em 2023, restringiu o direito de adoção por casais do mesmo sexo.
Aos militantes de pensamentos ultraconservadores soma-se a incitação a um saudosismo de tempos autoritários, a partir de recortes duvidosos que ignoram prejuízos aos direitos humanos de determinadas épocas. Esse fenômeno tem fortalecido o crescimento de discursos de extrema-direita na Península Ibérica, que ecoam princípios totalitários do salazarismo e do franquismo. Os períodos desses ditadores no poder são evocados a partir de contraposições falaciosas com cenários recentes, lançando mão de justificativas vazias como “o povo português era mais feliz com Salazar”.
Rompantes de ódio e desinformação, cunhados como nacionalismo e que desrespeitam não só grupos sociais, mas também nações inteiras e organismos internacionais, são um artifício recorrente das novas formas de autoritarismo. A interferência de Trump em questões brasileiras – impondo o tarifaço aos nossos produtos e sancionando ministros da nossa Suprema Corte – é exemplo de uma extrapolação calculada e diametralmente oposta aos movimentos de multilateralismo, tão necessários à resolução dos problemas globais contemporâneos.
A postura firme do governo brasileiro diante desses episódios deve servir de exemplo. Uma vez que o maquiavelismo antidemocrático se vale de subterfúgios pontuais, mas não isolados, pois compõem um enredamento sorrateiro no espaço democrático, a resistência também precisa ser constante e vigilante, desmontando, a cada oportunidade, as tentativas de fragilização dos direitos fundamentais. Assemelha-se a remover com obstinação e minúcia as ervas daninhas de um jardim com espantoso potencial de florescimento. •
Publicado na edição n° 1383 de CartaCapital, em 15 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Jardim infestado’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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