Do Micro Ao Macro
Aroma de perfeição
Pequenos produtores transformam a Serra do Caparaó em símbolo do café premium


Era 2019 quando uma pequena produtora de café decidiu arriscar um caminho diferente para a lavoura da família. Até então, o grão era commodity, colhido e secado em terreiros simples, sem diferenciação no mercado. O ponto de virada veio após um curso de degustação. Diante da mesa de prova, ela percebeu que o café poderia ter sabores, aromas e destinos muito mais amplos. Voltou para casa decidida a experimentar. Pediu ao marido que construísse um terreiro suspenso e começou a separar grãos maduros para testar. Em um sítio de baixa altitude, contrariando o senso comum da época, produziu os primeiros lotes especiais. O resultado surpreendeu. No mesmo ano, conquistou prêmios em concursos regionais e nacionais, abrindo as portas para as exportações.
A produtora se chama Silmara Emerick, quarta geração de uma família da mineira Alto Jequitibá que transformou uma propriedade modesta em referência de inovação, qualidade e empreendedorismo. Ao lado do marido e dos filhos, Emerick manteve a tradição e renovou a forma de viver do café. Sua trajetória simboliza a guinada da região do Caparaó nas últimas duas décadas. Tradicional produtora, a área formada por 16 municípios de Minas Gerais e Espírito Santo tornou-se símbolo dos cafés especiais produzidos no Brasil e que têm conquistado o mundo, com Denominação de Origem reconhecida pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial em 2021. O nome indígena Caparaó significa “águas cristalinas que rolam das pedras” e traduz a ligação íntima entre o território, o meio ambiente e o modo de vida das famílias produtoras.
São cerca de mil agricultores na região, quase todos em pequenas propriedades familiares. A geografia montanhosa impede a mecanização, mas transforma a colheita manual em ativo. Cada grão é escolhido com cuidado, preservando a qualidade. A altitude acima de mil metros, os microclimas criados pelo parque nacional na região e o modo de produzir repassado de geração em geração resultam em cafés naturalmente doces, com notas de mel, chocolate, rapadura e frutas.
A partir dos anos 2000, programas de capacitação e instituições de apoio ensinaram os produtores locais a investir na pós-colheita e em boas práticas de manejo. A região acumulou prêmios nacionais e internacionais, tornando-se território de excelência. Para dar coesão ao movimento, nasceu a Associação de Produtores de Cafés Especiais do Caparaó, em 2016, responsável por organizar certificações, treinamento e ações de marketing. Por meio da entidade, produtores conquistaram a Denominação de Origem, um selo que garante rastreabilidade, identidade e comprovação de qualidade. Para compradores e consumidores, o certificado significa que cada lote pode ser rastreado até o produtor, talhão e método de secagem, com laudo técnico atestando suas características. Para os agricultores, representa valorização, proteção da reputação coletiva e melhores preços no mercado.
A colheita manual é um dos segredos, assim como o manejo sustentável
“Aqui sempre se produziu café, mas o especial ganhou notoriedade há 15 ou 20 anos”, lembra Gustavo Villas Boas, produtor na mineira Espera Feliz. “O que nos diferencia é a combinação de altitude, microclima e a cultura familiar que se mantém viva.” Essa ligação com o meio ambiente é essencial. A proximidade com o parque nacional faz com que a preservação de nascentes e encostas esteja diretamente ligada à qualidade da lavoura. Muitos produtores incorporaram práticas regenerativas, como plantio de árvores nativas, manutenção de cobertura do solo, uso racional da água e reciclagem de resíduos. A sustentabilidade deixou de ser discurso e passou a ser rotina, influenciando diretamente na produtividade e na imagem internacional do café da região.
O empreendedorismo também ganhou novas formas de expressão. Famílias como a De Lacerda, em Espera Feliz, transformaram a lavoura em vitrine de cafés premiados e abriram as porteiras para o turismo. Colheitas artesanais, oficinas de abanação e provas conectam visitantes à realidade da roça, mostrando que a experiência é outro produto de valor. A integração consolidou-se com a Rota de Experiências Caparaó Mineiro, lançada em 2025, em parceria com o Sebrae Minas, prefeituras e cooperativas de crédito. São 13 vivências turísticas que unem cafeicultura, gastronomia, cultura local e hospitalidade. Os turistas acompanham todo o processo, da colheita manual à torra, aprendem a identificar aromas e sabores e se conectam à história das famílias. Mais que atrativo, o turismo tornou-se um complemento de renda. Pequenos negócios se reinventaram para receber visitantes, abrir cafeterias, oferecer hospedagem e transformar a identidade cafeeira em motor econômico. A governança coletiva se fortaleceu, organizando sinalização, marketing territorial e formação profissional. O café, antes visto apenas como produto agrícola, agora é vetor de desenvolvimento integrado.
Nesse ponto, o caso de Emerick destaca-se novamente. Depois das premiações iniciais, a cafeicultora diversificou a produção com uma pequena torrefação instalada no sítio. Hoje, vende cafés torrados diretamente ao consumidor final, em redes sociais e cafeterias, e exporta para diferentes países. A família incorporou ainda práticas mais sustentáveis: deixou de queimar lixo, planta árvores e controla custos, além de ter certificado a propriedade. “Antes, a gente não sabia nem quanto custava uma saca de café. Hoje sabemos, e isso mudou a nossa forma de ver a roça”, diz a produtora. O café especial, segundo ela, não é só qualidade na xícara. É dignidade para o agricultor, renda para a família, respeito ao meio ambiente e futuro para os filhos que decidiram permanecer no campo.
Do primeiro terreiro suspenso ao selo de Denominação de Origem, o Caparaó encontrou um caminho no qual tradição e inovação caminham juntas. E nas águas que rolam das pedras, como define o nome indígena da serra, brota o esforço de produtores como Silmara Emerick, que fizeram da sustentabilidade e do empreendedorismo a marca do café de aromas e sabores únicos de um pedaço especial do Brasil. •
Publicado na edição n° 1383 de CartaCapital, em 15 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Aroma de perfeição’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.