

Opinião
Reconstruir Gaza
Dinheiro e cimento não serão suficientes. Resta saber como recompor uma sociedade após um genocídio


Em 1928, Aldous Huxley escreveu o romance Contraponto. Um dos diálogos terminava com uma pergunta desconcertante: “Como você sabe que a Terra não é o inferno de outro planeta?” Em Gaza, hoje, essa pergunta parece fazer sentido para milhares de habitantes. Crianças descalças empurrando avós em cadeiras de rodas pelos escombros. Crianças amputadas lutando contra a poeira. Mães carregando crianças com a pele sangrando devido a erupções cutâneas. Crianças tremendo diante dos implacáveis ataques aéreos. E crianças olhando para o céu, acompanhando o fogo a partir de helicópteros.
Com o anúncio de um acordo de cessar-fogo na quarta-feira 8, a ONU começa a avaliar o que poderia ser um plano de reconstrução. A estimativa é de que, se os canhões forem silenciados imediatamente, a região precisará de dez a 15 anos para se reerguer, num custo avaliado em 53 bilhões de dólares. Já a recuperação dos danos ambientais em Gaza poderia levar décadas.
O abastecimento de água doce está severamente limitado e grande parte do que resta está poluída. O colapso da infraestrutura de tratamento de esgoto, a destruição de sistemas de encanamento e a dependência de fossas sépticas para saneamento provavelmente aumentaram a contaminação do aquífero que abastece a maior parte do enclave, enquanto as áreas marinhas e costeiras também, suspeita-se, estariam contaminadas.
Além disso, desde 2023, a Faixa de Gaza perdeu 97% das árvores, 95% da cobertura vegetal e 82% das plantações anuais, tornando impossível a produção de alimentos em larga escala. De acordo com a ONU, perto de 78% dos estimados 250 mil edifícios foram danificados ou destruídos, gerando 61 milhões de toneladas de entulho, das quais em torno de 15% podem estar contaminadas com amianto, resíduos industriais ou metais pesados. O volume é o equivalente a 15 pirâmides do Egito.
Atualmente, ninguém tem acesso a saneamento seguro, em comparação com 85% da população conectada a sistemas de esgoto e estações de tratamento antes de outubro de 2023. Mais de 1,2 milhão de moradores (57% da população de Gaza) estão expostos a esgoto ou matéria fecal a menos de 10 metros de suas casas, representando graves riscos à saúde. Apenas metade das famílias tem acesso a saneamento básico privado, enquanto o restante depende de instalações compartilhadas ou inseguras, comprometendo a saúde e a dignidade. No fim de 2024, existiam poucas latrinas em Gaza. Cada uma delas era usada por centenas de desesperados.
O acesso a produtos de higiene é extremamente baixo: 63% das famílias (1,3 milhão de indivíduos) não têm sabão, principalmente devido aos altos preços. Quase 500 mil mulheres e meninas não têm materiais adequados para higiene menstrual, o que afeta gravemente sua saúde, dignidade e mobilidade. Desde 18 de março de 2025, nenhum item de saneamento entrou em Gaza, e os itens de higiene foram bloqueados até o fim de julho. Embora pequenas importações do setor privado tenham sido retomadas em meados de agosto, a disponibilidade permanece muito limitada.
A gestão de resíduos sólidos em Gaza deteriorou-se drasticamente. Os serviços de coleta foram severamente interrompidos pela escassez de combustível, falta de peças de reposição e aterros sanitários inacessíveis. Como resultado, 42% das famílias vivem perto de resíduos não coletados, deixando, aproximadamente, 900 mil palestinos expostos ao acúmulo de lixo em áreas residenciais.
O colapso da gestão de resíduos, portanto, criou condições ideais para a explosão de doenças. Nenhuma intervenção de controle de vetores foi implementada em mais de dois anos, permitindo a proliferação de pragas e parasitas. Como resultado, 64% das famílias relatam infestações de piolhos e ácaros, e 57% apontam problemas de pele, como erupções cutâneas e sarna, condições diretamente relacionadas à falta de higiene, superlotação e exposição ao lixo.
A crise hídrica contribuiu para o aumento de doenças infecciosas, incluindo casos de diarreia aguda (que aumentou 36 vezes) e síndrome de icterícia aguda, indicativa de hepatite A. Neste caso, o aumento foi de 384 vezes. De um total de 214 instalações de dessalinização de águas subterrâneas, apenas 84 ainda estão em operação.
Não por acaso, a ONU admite que jamais viu um conflito destruir de forma tão rápida um local nos últimos anos como em Gaza. Imperdoável, o ataque cataclísmico deixou o território irreconhecível. Os 66 mil mortos e 150 mil feridos são apenas os números oficiais, enquanto famílias ainda esperam desenterrar milhares de corpos sob os escombros. Reconstruir, quando o momento chegar, será uma operação sem precedentes na região. Dinheiro e cimento não serão suficientes. Resta saber como reconstruir uma sociedade após um genocídio. •
Publicado na edição n° 1383 de CartaCapital, em 15 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Reconstruir Gaza ‘
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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