Mundo
Caça às bruxas
Novas medidas do governo Trump visam silenciar os opositores e exterminar o pensamento crítico


Uma nova classificação de terrorismo doméstico instituída pelo presidente Donald Trump marca uma inflexão histórica e perigosa na política interna dos Estados Unidos. A medida inédita e com graves implicações constitucionais, instrui agências federais, do FBI ao Departamento de Justiça, Tesouro e Receita, a identificar, monitorar e punir juridicamente entidades e indivíduos considerados hostis aos “valores americanos tradicionais” e que “endossem o antiamericanismo, o anticapitalismo, o anticristianismo e àqueles que defendem visões norte-americanas tradicionais sobre família, religião e moralidade”. O texto, abrangente, chancela uma caça às bruxas sem precedentes, mesmo para os padrões de uma nação paranoica. Não por acaso, a medida foi anunciada poucos dias após o assassinato do ativista de extrema-direita Charlie Kirk, episódio imediatamente instrumentalizado pela Casa Branca para justificar a escalada repressiva.
Em uma linha nada tênue de perseguição política, o memorando concentra-se no que o governo chama de “terrorismo de esquerda”. Indivíduos e grupos que participam, apoiam ou financiam o antiautoritarismo, o feminismo, os direitos LGBTQIA+, os migrantes e quaisquer outras causas progressistas passaram a ser considerados, desde o fim de setembro, “agitadores e anarquistas” e uma ameaça à segurança nacional. O dispositivo inclui a possibilidade de designar grupos inteiros como “organizações terroristas domésticas e violência política organizada”. A classificação não existe formalmente na lei norte-americana e não prevê salvaguardas jurídicas básicas para quem for acusado.
O discurso oficial precede e legitima a nova ofensiva jurídica. Em 22 de setembro, Trump havia assinado um decreto no qual os grupos antifascistas (Antifa) passaram a ser considerados organizações terroristas domésticas, sob acusação de conspirar “contra os valores, a economia e a estabilidade institucional” dos EUA. Três dias depois, o republicano anunciou o envio de tropas da Guarda Nacional a Portland, no Oregon, sob o argumento de proteger a cidade devastada pela guerra e “quaisquer instalações do ICE sitiadas pela Antifa e outros terroristas domésticos”, mas foi impedido, ao menos por ora, pela juíza Karim Immergut. No dia 30, durante uma reunião entre o presidente, o secretário de Guerra, Pete Hegseth, e generais, o magnata afirmou que o inimigo era interno e era preciso “lidar com isso antes que saia do controle”. E exortou: “E isso não vai sair do controle depois que vocês estiverem envolvidos”.
A Open Society Foundations, de George Soros, organização filantrópica fundada em 1979 que há décadas apoia esforços democráticos, de imigração e a reforma da justiça criminal em todo o mundo, tornou-se um alvo preferencial da Casa Branca. Na Truth Social, o presidente ameaçou impedir que “esses lunáticos destruam a América”. E atacou: “George Soros, seu maravilhoso filho, um esquerdista radical, e seu grupo de psicopatas causaram grandes danos ao nosso país”. O vice-presidente, JD Vance, ampliou o bullying: George Soros e sua Open Society Foundations pagam “os salários de simpatizantes terroristas” e “promovem a violência e o terrorismo”. “Vocês sabiam que eles se beneficiam de tratamentos fiscais generosos?”, afirmou Vance em um podcast. “Eles são literalmente subsidiados por vocês e por mim, os contribuintes americanos. E como eles nos recompensam? Incendiando a casa construída pela família americana ao longo de 250 anos.”
“Sinal perigoso de comportamento antidemocrático”, diz a porta-voz da Open Society
Em conversa com CartaCapital, uma porta-voz da Open Society afirmou que o governo Trump está atacando a liberdade de expressão que não gosta e tentando rotulá-la como terrorismo ou discurso de ódio. “Isso faz parte de uma agenda mais ampla que, nas últimas semanas, mirou em Jimmy Kimmel e em outros integrantes da mídia, rotulando a dissidência pacífica como perigosa. Isso não tem base legal, é inconstitucional e antiamericano.” De acordo com a porta-voz, a fundação vai manter seu trabalho e está preparada para lidar com novos ataques do governo. “Acreditamos que ainda há freios e contrapesos nos Estados Unidos, mas estamos prontos para nos defender. Temos plena confiança de que os ataques, onde quer que se manifestem, serão derrotados, seja nos tribunais ou na opinião pública. Essas são batalhas que estamos prontos para travar e vencer.” Ainda segundo a representante da entidade, Trump e suas ameaças devem sempre ser levados a sério. “O que os EUA vivem atualmente não faz parte de um comportamento de democracias fortes, nem de líderes democráticos, é um sinal perigoso de comportamento antidemocrático.”
Dados do consórcio de Estudo do Terrorismo e Respostas ao Terrorismo da Universidade de Maryland mostram que a maior ameaça terrorista aos norte-americanos nas últimas décadas veio de extremistas de direita, particularmente supremacistas brancos e militantes anti-Estado, mas quando foi confrontada pelo The Washington Post sobre o tema, a porta-voz da Casa Branca, Abigail Jackson, desdenhou do levantamento. “Quaisquer ‘especialistas’ que tentem minimizar a violência política de esquerda ou apontar o dedo para os republicanos após a série de ataques violentos de esquerda não são especialistas, são simplesmente atores partidários ignorando a realidade.”
Além do impacto jurídico, há um efeito social preocupante. A medida visa incutir o medo na oposição. Terá o efeito pretendido? Manifestantes em Los Angeles, Chicago e Portland não parecem dispostos a ceder às ameaças das novas regras e têm entrado em confronto diário com agentes da polícia de imigração, o ICE, sobretudo nas proximidades das instalações regionais da agência. Será um esboço de reação à escalada autoritária? •
Publicado na edição n° 1383 de CartaCapital, em 15 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Caça às bruxas’
Uma nova classificação de terrorismo doméstico instituída pelo presidente Donald Trump marca uma inflexão histórica e perigosa na política interna dos Estados Unidos. A medida inédita e com graves implicações constitucionais, instrui agências federais, do FBI ao Departamento de Justiça, Tesouro e Receita, a identificar, monitorar e punir juridicamente entidades e indivíduos considerados hostis aos “valores americanos tradicionais” e que “endossem o antiamericanismo, o anticapitalismo, o anticristianismo e àqueles que defendem visões norte-americanas tradicionais sobre família, religião e moralidade”. O texto, abrangente, chancela uma caça às bruxas sem precedentes, mesmo para os padrões de uma nação paranoica. Não por acaso, a medida foi anunciada poucos dias após o assassinato do ativista de extrema-direita Charlie Kirk, episódio imediatamente instrumentalizado pela Casa Branca para justificar a escalada repressiva.
Em uma linha nada tênue de perseguição política, o memorando concentra-se no que o governo chama de “terrorismo de esquerda”. Indivíduos e grupos que participam, apoiam ou financiam o antiautoritarismo, o feminismo, os direitos LGBTQIA+, os migrantes e quaisquer outras causas progressistas passaram a ser considerados, desde o fim de setembro, “agitadores e anarquistas” e uma ameaça à segurança nacional. O dispositivo inclui a possibilidade de designar grupos inteiros como “organizações terroristas domésticas e violência política organizada”. A classificação não existe formalmente na lei norte-americana e não prevê salvaguardas jurídicas básicas para quem for acusado.
O discurso oficial precede e legitima a nova ofensiva jurídica. Em 22 de setembro, Trump havia assinado um decreto no qual os grupos antifascistas (Antifa) passaram a ser considerados organizações terroristas domésticas, sob acusação de conspirar “contra os valores, a economia e a estabilidade institucional” dos EUA. Três dias depois, o republicano anunciou o envio de tropas da Guarda Nacional a Portland, no Oregon, sob o argumento de proteger a cidade devastada pela guerra e “quaisquer instalações do ICE sitiadas pela Antifa e outros terroristas domésticos”, mas foi impedido, ao menos por ora, pela juíza Karim Immergut. No dia 30, durante uma reunião entre o presidente, o secretário de Guerra, Pete Hegseth, e generais, o magnata afirmou que o inimigo era interno e era preciso “lidar com isso antes que saia do controle”. E exortou: “E isso não vai sair do controle depois que vocês estiverem envolvidos”.
A Open Society Foundations, de George Soros, organização filantrópica fundada em 1979 que há décadas apoia esforços democráticos, de imigração e a reforma da justiça criminal em todo o mundo, tornou-se um alvo preferencial da Casa Branca. Na Truth Social, o presidente ameaçou impedir que “esses lunáticos destruam a América”. E atacou: “George Soros, seu maravilhoso filho, um esquerdista radical, e seu grupo de psicopatas causaram grandes danos ao nosso país”. O vice-presidente, JD Vance, ampliou o bullying: George Soros e sua Open Society Foundations pagam “os salários de simpatizantes terroristas” e “promovem a violência e o terrorismo”. “Vocês sabiam que eles se beneficiam de tratamentos fiscais generosos?”, afirmou Vance em um podcast. “Eles são literalmente subsidiados por vocês e por mim, os contribuintes americanos. E como eles nos recompensam? Incendiando a casa construída pela família americana ao longo de 250 anos.”
“Sinal perigoso de comportamento antidemocrático”, diz a porta-voz da Open Society
Em conversa com CartaCapital, uma porta-voz da Open Society afirmou que o governo Trump está atacando a liberdade de expressão que não gosta e tentando rotulá-la como terrorismo ou discurso de ódio. “Isso faz parte de uma agenda mais ampla que, nas últimas semanas, mirou em Jimmy Kimmel e em outros integrantes da mídia, rotulando a dissidência pacífica como perigosa. Isso não tem base legal, é inconstitucional e antiamericano.” De acordo com a porta-voz, a fundação vai manter seu trabalho e está preparada para lidar com novos ataques do governo. “Acreditamos que ainda há freios e contrapesos nos Estados Unidos, mas estamos prontos para nos defender. Temos plena confiança de que os ataques, onde quer que se manifestem, serão derrotados, seja nos tribunais ou na opinião pública. Essas são batalhas que estamos prontos para travar e vencer.” Ainda segundo a representante da entidade, Trump e suas ameaças devem sempre ser levados a sério. “O que os EUA vivem atualmente não faz parte de um comportamento de democracias fortes, nem de líderes democráticos, é um sinal perigoso de comportamento antidemocrático.”
Dados do consórcio de Estudo do Terrorismo e Respostas ao Terrorismo da Universidade de Maryland mostram que a maior ameaça terrorista aos norte-americanos nas últimas décadas veio de extremistas de direita, particularmente supremacistas brancos e militantes anti-Estado, mas quando foi confrontada pelo The Washington Post sobre o tema, a porta-voz da Casa Branca, Abigail Jackson, desdenhou do levantamento. “Quaisquer ‘especialistas’ que tentem minimizar a violência política de esquerda ou apontar o dedo para os republicanos após a série de ataques violentos de esquerda não são especialistas, são simplesmente atores partidários ignorando a realidade.”
Além do impacto jurídico, há um efeito social preocupante. A medida visa incutir o medo na oposição. Terá o efeito pretendido? Manifestantes em Los Angeles, Chicago e Portland não parecem dispostos a ceder às ameaças das novas regras e têm entrado em confronto diário com agentes da polícia de imigração, o ICE, sobretudo nas proximidades das instalações regionais da agência. Será um esboço de reação à escalada autoritária? •
Publicado na edição n° 1383 de CartaCapital, em 15 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Caça às bruxas’
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