Daniel Camargos
Repórter especial na 'Repórter Brasil', venceu diversos prêmios por reportagens, entre eles o Vladimir Herzog. Dirigiu o documentário 'Relatos de um correspondente da guerra na Amazônia' e participou da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center.
Daniel Camargos
Matou a tarifa zero e foi passear na lagoa
Após pressionar a Câmara e barrar o transporte gratuito, o prefeito de BH, Álvaro Damião, virou meme ao passear numa balsa mambembe na Pampulha


Na manhã de domingo 5, dois dias depois de enterrar o projeto da Tarifa Zero em Belo Horizonte, o prefeito Álvaro Damião (União Brasil) apareceu sorridente, colete salva-vidas no peito, navegando em uma bizarra balsa mambembe na Lagoa da Pampulha. A cena virou meme instantâneo. Alguns editaram o vídeo com uma versão lenta e fora do tom de My Heart Will Go On, trilha sonora de Titanic, para ressaltar o ridículo da situação.
Nos comentários, o destaque foi para as cadeiras de plástico, estilo de boteco, e para a desconfiança geral sobre a limpeza da lagoa, símbolo de Belo Horizonte desde os anos 1940, quando o então prefeito Juscelino Kubitschek encomendou a Oscar Niemeyer o conjunto arquitetônico modernista que transformou a região em um laboratório de ideias que mais tarde inspirariam Brasília.
A imagem de Damião sobre as águas veio menos de 48 horas depois de a Câmara Municipal enterrar a proposta de transporte público gratuito. Assinado por 22 vereadores, o projeto previa a implantação gradual da Tarifa Zero e a substituição do vale-transporte por uma contribuição patronal, batizada Taxa do Transporte Público.
O projeto chegou ao plenário com base sólida, mas naufragou após pressão direta da prefeitura e de entidades empresariais. São 41 vereadores na capital mineira e 22 eram signatários da Tarifa Zero, mas apenas dez mantiveram o voto: quatro do PT, três do PSOL e um do PCdoB, PSD e PV. No dia seguinte, o Diário Oficial trouxe a exoneração de indicados por vereadores que contrariaram o governo, em sinal claro de retaliação política.
A polêmica em torno do transporte gratuito em Belo Horizonte, porém, não é uma questão local. O Brasil é hoje o país com o maior número de iniciativas de Tarifa Zero no mundo, somando mais de 130 cidades que oferecem transporte público gratuito em tempo integral.
Entre elas, 16 municípios têm mais de 100 mil habitantes, com destaque para Caucaia (CE), Maricá (RJ) e Ibirité (MG). Outras capitais adotaram versões parciais: São Paulo e Brasília oferecem gratuidade aos domingos.
O tema também entrou na agenda nacional. O governo Lula determinou ao Ministério da Fazenda a elaboração de um estudo sobre a viabilidade de uma política federal de transporte gratuito. A ideia é transformar a Tarifa Zero em um programa de escala nacional. O contexto explica por que o debate em Belo Horizonte ganhou tanta projeção: a derrota do projeto na Câmara ocorre justamente quando o governo federal tenta impulsionar a mesma pauta em nível nacional.
Durante a semana anterior e no dia da votação, a capital mineira assistiu a um movimento raro de mobilização cívica. Blocos de carnaval, faixas pela cidade, campanhas nas redes sociais, shows e a presença de artistas como Djonga e Fernanda Takai marcaram os atos.
Os defensores do projeto argumentam que o transporte é o elo invisível que conecta direitos, como saúde, educação, trabalho e lazer, e que não deveria ser tratado como mercadoria. Um estudo do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Faculdade de Ciências Econômicas (Cedeplar), da UFMG, calculava que cada real investido na gratuidade geraria 3,89 reais em retorno econômico para a cidade.
O movimento tinha respaldo técnico e social, mas enfrentava a resistência do que pode ser chamado, sem exagero, de tropa de elite da vanguarda do atraso. A Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg), a Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) e a Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (Fecomércio-MG) publicaram estudos alarmistas.
A Fiemg projetou queda de até 2,1% no PIB municipal, perda de 55 mil empregos e inflação adicional de 3%, caso a medida fosse aprovada. A Fecomercio afirmou que a Tarifa Zero “estrangularia o comércio”. A CDL pediu “amadurecimento” do debate. O coro do andar de cima foi uníssono e encontrou no prefeito um ventríloquo ideal.
Damião tomou posse em março, após a morte de Fuad Noman (PSD), de quem era vice. O atual prefeito fez carreira no jornalismo esportivo na Rádio Itatiaia, comprada em 2021 pelo bilionário Rubens Menin, dono também da construtora MRV, do Banco Inter e da CNN Brasil.
Fuad tinha um perfil mais centrista do que Damião e contou com apoio explícito da esquerda, incluindo PT e PSOL, para se eleger no segundo turno, quando disputou contra o deputado estadual Bruno Engler (PL), um bolsonarista de extrema-direita.
Damião sustentou que a medida “oneraria as empresas” e “assustaria investidores”. O contraste entre as projeções do andar de cima e do prefeito e o estudo da UFMG revela mais do que divergência técnica: expõe duas visões de cidade. Uma, restrita, em que o transporte é mercadoria e o acesso depende do bolso. Outra, pública, em que o deslocamento é direito e motor de redistribuição.
Em Brasília, a Tarifa Zero passou a ser discutida ao lado do fim da jornada 6×1, outra pauta popular. Aliás, a mesma Fiemg já divulgou estudo afirmando que a redução da jornada poderia “causar impacto de até 16% no PIB” e destruir milhões de empregos.
Em Belo Horizonte, a prefeitura preferiu mirar o sintoma em vez da causa. O sistema de ônibus da capital consome subsídios cada vez maiores, 713 milhões de reais em 2024, sem entregar melhorias equivalentes.
A tarifa comum chegou a 5,75 reais, uma das mais altas entre as capitais. O projeto de lei propunha reorganizar o financiamento com custo total de 2,1 bilhões de reais anuais, mas a Câmara escolheu manter tudo como está.
Dois dias depois, vários vereadores, incluindo alguns que mudaram de voto após a pressão do prefeito, estavam navegando na balsa precária da Pampulha. Se o passeio patético não foi uma tentativa de mudar de assunto, foi uma amostra de amadorismo.
Os vídeos da balsa viralizaram com legendas impiedosas. Deu a sensação de ser o retrato de um governo em busca de selfie, não de política pública.
A Tarifa Zero não é utopia nem capricho de esquerda. É uma política redistributiva e politicamente popular. O que se viu em BH foi um caso clássico de reação conservadora disfarçada de prudência fiscal.
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