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Coração de estudante

Próximo dos 80 anos, Wagner Tiso relembra sua luminosa trajetória na MPB e em defesa da democracia no Brasil

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O maestro tem um projeto para incentivar a doação de pianos a comunidades pobres – Imagem: Fabio Motta/Carta Capital
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Pianista, compositor, arranjador e maestro de renome internacional, o mineiro ­Wagner Tiso está prestes a completar 80 anos e é um dos maiores músicos brasileiros em atividade, além de um instrumentista icônico da MPB. Ex-integrante do Clube da Esquina e da banda Som Imaginário, também é conhecido por seu engajamento político, sempre alinhado à esquerda, em momentos marcantes da história nacional. Nos anos 1980, foi um dos fundadores do PT e participou ativamente do movimento pelas Diretas Já. É também daquela década sua música mais conhecida, Coração de Estudante, que ganhou letra do amigo de toda a vida Milton Nascimento, o “Bituca”, e se transformou em um verdadeiro hino do movimento estudantil.

Sentado ao lado do piano CP70 da ­Yamaha que usou para criar a música, originalmente concebida para compor a trilha sonora do documentário Jango (1984), de Silvio Tendler, o músico sorri ao comentar que a canção foi mais uma vez lembrada em diversos pontos do Brasil durante as manifestações contra a anistia e a PEC da Blindagem. “Realmente, corremos o risco de golpe, foi por pouco. Tivemos uma turma sem-vergonha no poder. E agora querem anistia, que também quase aconteceu. Mas o pessoal foi para a rua, e foi uma manifestação maravilhosa. Muita gente, grandes artistas no palco – isso mudou o rumo da coisa”, observa.

Na manifestação em Copacabana, muitos notaram a ausência de Milton, quando se formou no palco uma das imagens mais marcantes do ano, com Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Geraldo Azevedo e Djavan lado a lado. Reunir gigantes da música em atos pela democracia traz boas lembranças a Tiso, que, logo após o fim da ditadura, foi convidado pelo então governador de Minas Gerais, Tancredo Neves, a buscar o apoio da classe artística aos comícios das Diretas Já. “Recebi uma mensagem dizendo que o Tancredo estava convidando os artistas mineiros para ir ao Palácio da Liberdade idealizar um movimento por eleições com voto popular. O Henfil já tinha me falado disso. Foi ele, aliás, quem inventou o nome ‘Diretas Já’. E nós fomos lá falar com o Tancredo. O Bituca estava em Belo Horizonte, o Gonzaguinha tinha casado com uma belo-horizontina e estava lá também”, relembra. “Saímos à caça dos artistas e lotamos os palcos da capital mineira e do Rio, que era o mais importante.”

Hoje, o engajamento é diferente, constata o maestro. “Agora tem internet, que mudou a forma de fazer política. Naquele tempo, era olho no olho, braço no braço. Para convidar alguém, eu ia na casa da pessoa.” O poder de mobilização de Tiso já havia sido importante na formação do PT. “O Lula me pediu para ajudar. Fui para a rua, eu e minha irmã, colher assinaturas em favor da fundação do partido. Recolhemos muitas, muitas assinaturas mesmo. O PT foi fundado e existe até hoje.”

“Realmente, corremos o risco de golpe, foi por pouco. Tivemos uma turma sem-vergonha no poder. E agora querem anistia”, observa

Passados 45 anos da fundação da legenda, Tiso orgulha-se do legado petista. “Já tivemos quatro mandatos, três do Lula e um da Dilma, e isso é uma vitória, o PT vingou. É um partido de esquerda que pensa na qualidade de vida do povo. Porque, do lado de lá, eles só pensam em si, em ficar mais ricos. Já nós pensamos em como o povo pode viver melhor”, compara. O músico ressalta que jamais quis se candidatar a um cargo eletivo. Sua única experiência na administração pública foram os cinco anos à frente do Museu Villa-Lobos, nomeado por Dilma ­Rousseff. “Dois dias depois que entrou o Temer, me mandaram embora”, diz o maestro, que chegou a ser sondado para o Ministério da Cultura. Ele afirma “não ter ficado muito entusiasmado” com o convite: “Além disso, a Dilma falou que estava precisando de uma mulher na pasta. Abri mão em favor da Ana de Hollanda e fiquei no museu. Nos tornamos amigos”.

Em 12 de dezembro, Tiso vai comemorar seus 80 anos no palco, com um show em Maricá, cidade do litoral fluminense que se tornou um bastião da esquerda. Ele mantém uma agenda constante de espetáculos e tem se apresentado recentemente ao lado de outro instrumentista que ajudou a moldar o som do Clube da Esquina, o guitarrista Toninho Horta. Ainda este ano, pretende reunir no Circo Voador, no Rio, os integrantes da lendária banda Som Imaginário, em um show que pode estender-se para outras capitais.

As lembranças de sua carreira são muitas, e algumas delas, deliciosas. “Minha mãe era professora de piano e dava aula para o Bituca. Eu tinha 12 anos e o Bituca, 15, quando apareceu um concurso. Mas, na época, só fazia sucesso trio, tipo Tamba Trio, Zimbo Trio e outros. Fomos tocar, o Bituca no violão, e aí eu falei que daquele jeito não dava, que ele tinha que tocar baixo acústico. Ele nunca tinha tocado esse instrumento. O Paulinho Horta, irmão do Toninho Horta, emprestou um baixo, e eu fiquei lá com o Bituca, descobrindo a escala e tal, ele machucando os dedos, que quase sangravam. Ele gostava de tocar e cantar junto, e em uma semana já estava dominando o acompanhamento com o baixo”.

Um xodó do músico é o Instituto ­Wagner Tiso, presidido por sua mulher, a produtora Mariana Lisboa. Juntos, eles lançaram o projeto Piano para o Mundo, que tem como objetivo obter doações do instrumento de cordas percussivas no Brasil e no exterior para redistribuí-los a escolas e conservatórios de música em todo o País. “É um projeto social voltado à inclusão cultural, ao acesso à educação artística e à preservação do patrimônio musical brasileiro. A ideia é incentivar que talentos como o Wagner Tiso surjam nas camadas menos privilegiadas e nos rincões do Brasil”, explica Lisboa. O Instituto está em negociação com as embaixadas da França e da Áustria para viabilizar a doação de pianos. Tiso e Lisboa já se reuniram, em Brasília, com a ministra da Cultura, Margareth Menezes, a quem pediram apoio logístico para facilitar a entrada nos portos brasileiros.

Os projetos devem estender-se por 2026 com a ampliação da plataforma ­online de partituras organizada pelo Instituto e até mesmo a possibilidade de Wagner Tiso gravar um disco cantando, o que seria uma novidade: “Você sabia que ele sempre foi o cantor da família?”, diz Lisboa. “É, só que, quando ouvi o Bituca cantando, nunca mais cantei”, devolve o maestro. •

Publicado na edição n° 1382 de CartaCapital, em 08 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Coração de estudante’

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