Cultura
O judaísmo sob a ideia de revolução
Arlene Clemesha nos leva de volta à tradição de marxistas judaicos, ou que se debruçaram sobre o antissemitismo


O genocídio em Gaza, provocado pelo Estado de Israel, é talvez a expressão mais devastadora de nossa época. Mas suas consequências, pelo legado para o futuro e pelo modo como embaralha as cartas da memória histórica, extrapolam a atualidade.
Nesse cenário, é mais que oportuna a reedição de Marxismo e Judaísmo. História de Uma Relação Difícil, de Arlene Clemesha. Originalmente publicado em 1998, o livro é atualizado com dois novos capítulos: um sobre a participação dos judeus nas Brigadas Internacionais na guerra civil espanhola e outro sobre a “análise materialista da questão judaica” de Abraham Léon.
A autora nos mostra como a questão judaica e, depois, o problema do antissemitismo estiveram presentes nas reflexões de vários marxistas, a começar pelo próprio Karl Marx, cuja análise da “questão judaica”, de 1843, é abordada no primeiro capítulo.
Em diversas ocasiões, os marxistas estiveram na linha de frente da luta contra o antissemitismo, a despeito das “não poucas derrapagens” cometidas no momento de “explicar o que foram e são os judeus, as causas do antissemitismo e as propostas para a questão judaica”, como escreve Jacob Gorender na apresentação.
Dentre os marxistas “clássicos” da primeira metade do século XX, Leon Trotski talvez tenha sido o que demonstrou maior sensibilidade para o antissemitismo. Na última década de vida, nos anos 1930, como revela a autora, ele previu o recrudescimento do racismo antijudaico, em meio às campanhas antissemitas às quais ele próprio foi submetido pela ditadura stalinista.
Marxismo e Judaísmo. História de Uma Relação Difícil. Arlene Clemesha. Boitempo (256 págs., 69 reais)
É verdade que o livro de Arlene Clemesha é mais eficaz em defender Marx e o marxismo das acusações de pouco interesse pelo antissemitismo do que em pontuar os limites de uma abordagem que, salvo exceções, subordinava a resolução do racismo antijudaico à “emancipação humana”, como diria o jovem Marx, ou à “revolução internacional”, como apostava Trotski.
Tais limites se tornariam flagrantes no momento do Holocausto, que levou ao reavivamento do sionismo, que a maioria dos marxistas acreditava destinado ao desaparecimento.
Ao contrário do que hoje, retrospectivamente, podemos ver com nitidez, a fundação do Estado de Israel apresentava-se, à época, como uma forma legítima de autodeterminação nacional. O fato de os judeus terem sido alvo do maior massacre racista de que se tinha notícia justificaria o projeto de construção de um Estado-nação.
A tragédia, que se acentua após a Guerra dos Seis Dias, em 1967, é que essa autodeterminação foi feita à custa dos árabes-palestinos que lá viviam: os vencidos foram se tornando os vencedores, enquanto os outros vencidos, os palestinos, continuam como tais – e agora, mais que nunca, sob ameaça de uma limpeza étnica.
É nesse contexto que a oposição judaica às políticas do Estado de Israel torna-se fundamental: ela desloca o problema para o nível político, na contramão tanto da ideia de que tudo justifica a defesa de Israel quanto do antissemitismo que, infelizmente, cresce com as ruínas que se amontoam em Gaza. Como dizia Auguste Bebel, citado no livro, “o antissemitismo é o socialismo dos idiotas”.
Para escapar dessa dicotomia, nada melhor do que resgatar a tradição de marxistas judaicos, ou que trataram do problema do antissemitismo. Sem esses “judeus não judeus”, para dizer como Isaac Deutscher, o marxismo não seria o que é.
Rememorar essa história é uma maneira de retomar a tradição internacionalista do marxismo, para a qual a revolta contra a barbárie israelense não implica minimizar a barbárie nazista contra os judeus. •
*Fabio Mascaro Querido é professor de Sociologia da Unicamp.
VITRINE
Por Ana Paula Sousa
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Publicado na edição n° 1382 de CartaCapital, em 08 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O judaísmo sob a ideia de revolução’
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