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A cultura como forma de viver

Dona Dá, de 87 anos, é a 115ª ganhadora de um título que, há duas décadas, reconhece mestres populares

A cultura como forma de viver
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Salvaguarda. Dona Dá é uma figura de proa do Carnaval de Olinda. A cirandeira Lia de Itamaracá e o xilogravurista J. Borges foram outros dos contemplados – Imagem: Redes Sociais/Dona Dá Carnavalesca, Acervo Museu do Pontal e Andréa Rêgo Barros/Prefeitura do Recife
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Na casinha antiga de fachada colorida e número 207 da Rua da Boa Hora, no Sítio Histórico de Olinda, tem festa o ano inteiro. Mas é no Carnaval que não só a casa, mas toda a rua se transforma numa das passarelas mais importantes dos festejos de Momo.

É lá que vive, há mais de 60 anos, Jodecilda Airola da Silva, a Dona Dá, nomeada, recentemente, Patrimônio Vivo de Pernambuco, juntamente com outros nove mestres e grupos culturais do estado.

A vida de Dona Dá se entrelaça na história do Carnaval olindense, um dos mais badalados do Brasil e que, a cada ano, recebe um número maior de foliões. Fundadora do bloco Mulher na Vara, Dona Dá é também a anfitriã do tradicional Encontro de Bois da Boa Hora, a reunir centenas de pessoas na Quarta-Feira de Cinzas, num ritual que existe há mais de 20 anos e a cada edição conquista novos adeptos.

“O Carnaval é a minha saúde, eu vivo para ele!”, diz Dona Dá. “O desfile dos boizinhos é um sonho, a pessoa fica alucinada vendo aquele espetáculo, nem parece que o Carnaval acabou, porque ele continua na Boa Hora. Quem mora em Olinda pode se dizer abençoado, é uma cidade amiga, maravilhosa.”

Aos 87 anos, Dona Dá diz não aguentar mais embrenhar-se pela multidão que invade as ladeiras e as ruas estreitas da Cidade Alta. Mas isso não é um problema, porque o Carnaval vai até sua casa.

“Pular eu não pulo não, porque as minhas pernas já não aguentam tanto. Fico na minha janelinha e todos os grandes blocos de Olinda vão lá fazer uma reverência. Há 43 anos ofereço um troféu às agremiações que passam por lá. E a concentração da Mulher na Vara também é na minha porta, só sai depois que eu subo na vara”, conta, às gargalhadas.

O programa, além de dar maior visibilidade a gente que dedicou a vida à cultura local, concede-lhes uma bolsa vitalícia

O título de Patrimônio Vivo de Pernambuco de Dona Dá se soma a outros 114 concedidos a personalidades e grupos dentro de um programa de incentivo, criado em 2002 pelo governo estadual, que não só reconhece a contribuição dada por essas agremiações e mestres à cultura pernambucana como também concede uma bolsa vitalícia aos escolhidos.

O valor do benefício para pessoa física é de 2,3 mil reais e, para pessoa jurídica, 4,7 mil reais, pagos mensalmente, sendo extinto no caso de morte do mestre ou se a agremiação for desativada. Atualmente, o programa conta com 89 bolsas ativas – distribuídas para 43 personalidades e 46 agremiações.

Dentre os Patrimônios Vivos, alguns alçaram voos internacionais, a exemplo do xilogravurista J. Borges (1935–2024), do músico Mestre Salustiano (1945–2008), criador do Maracatu Piaba de Ouro, e da cirandeira Lia de Itamaracá, a mais ilustre de Pernambuco.

“É uma valorização do meu trabalho, da música. Quanto mais reconhecimento, melhor, faz o artista se sentir bem com o trabalho que realiza”, diz a artista tornada Patrimônio Vivo em 2005. “Isso é muito importante também para a nova geração, os jovens aprendem alguma coisa da nossa arte, do que significa a cultura.”

No fim de setembro, a artista recebeu o título Honoris Causa da Universidade Federal Fluminense. Antes, já havia recebido um título de Notório Saber concedido pela Universidade de Pernambuco e a Medalha de Honra ao Mérito outorgada pelo governo federal.

Segundo Lana Monteiro, gerente de Patrimônio Imaterial do governo de Pernambuco, alguns dos critérios levados em consideração na escolha dos Patrimônios Vivos são a forma como eles transmitem os saberes, o tempo de ­dedicação à arte – no mínimo 20 anos – e a idade dos postulantes.

“Estamos falando de um título que fortalece os bens culturais, porque são grupos, mestres e mestras vivos que participam do que a gente chama de salvaguarda dos bens, que ajudam a consolidar e perpetuar a cultura pernambucana, para que ela não se acabe”, explica.

Lana observa que, ao levar em conta e alimentar todos esses itens, a política, além de dar uma visibilidade ainda maior para artistas já reconhecidos na sua comunidade, chancela o reconhecimento do Estado a pessoas que lutaram a vida inteira para manter sua cultura viva.

“O mais rico dessa política é saber que os jovens mestres que estão se formando e os novos grupos surgindo são discípulos dos Patrimônios Vivos”, prossegue ela, ressaltando que o programa é também uma política de reparação e que, como contrapartida, os eleitos participam de festivais e agendas culturais em escolas.

Na quinta-feira 25 de setembro, a Câmara Municipal de Olinda realizou uma sessão solene para homenagear seus dois “filhos” ilustres que receberam o título este ano: Dona Dá e o fotógrafo e poeta Xirumba, que há mais de 50 anos registra, com a sensibilidade de poucos, a vida no Nordeste.

“Minha fotografia tem origem no meu olhar social, desde criança, quando vivia pelas ruas, vendo o dia a dia dos bairros por onde andava. Isso começou a abrir a minha visão de mundo”, diz Xirumba.

A vereadora petista Eugênia Lima, autora da homenagem aos dois olindenses, completa:

“Esse título vem para valorizar mestras e mestres da cultura popular que, muitas vezes, têm toda uma existência dedicada a registros, aos saberes. Olinda é um celeiro cultural importante, poderia investir também nesse reconhecimento”. •

Publicado na edição n° 1382 de CartaCapital, em 08 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A cultura como forma de viver’

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