Paulo Nogueira Batista Jr.

paulonogueira@cartacapital.com.br

Economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor-executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países

Opinião

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Um novo conceito geopolítico

Um agrupamento de patriotas cuida de garantir o direito de ingressar livremente no território dos EUA

Um novo conceito geopolítico
Um novo conceito geopolítico
O presidente Donald Trump, dos Estados Unidos. Foto: SAUL LOEB / AFP
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O propósito deste artigo é introduzir e definir cientificamente um novo conceito de geopolítica nacional – a turma do visto permanente. Trata-se de um agrupamento de patriotas, de tamanho razoável, cuja preocupação primordial e avassaladora é garantir para si, para suas famílias e para a sua descendência o direito de ingressar livremente no território dos Estados Unidos da América.

Como se sabe, o governo Trump vem impondo algumas restrições, negando vistos de entrada e até cancelando vistos existentes. O ministro do Supremo Alexandre de Moraes encabeça uma lista de brasileiros que vêm sendo alvos da suspensão de vistos e outras represálias. Para fugir desses riscos, a galera do visto permanente está disposta a tudo. Não só evita a todo custo dizer algo que possa desagradar aos irmãos do Norte, como se dispõe a dizer tudo, ou quase tudo, que possa encontrar alguma acolhida.

Um comportamento abjeto, diria um brasileiro mais cioso da sua autonomia. Mas dizer isso seria uma injustiça. Lembre-se, leitor ou leitora, que perder o acesso aos EUA traz limitações importantes, talvez importantíssimas. O sujeito pode ter propriedades, investimentos e negócios lá. Como fará para administrá-los a distância? Ou pode ter filhos estudando ou trabalhando lá, e não poderá visitá-los. Outro fator que pesa: a impossibilidade de fazer visitas periódicas à Disney, elemento indispensável na formação cultural da turma do visto permanente. Como ficar sem o acesso irrestrito ao maravilhoso mundo que os norte-americanos construíram?

Uma tristeza, em suma. Assim, cabe usar linguagem moderada e circunspecta ao fazer referência a esse pessoal. Um conceito científico não pode ser deturpado por adjetivação pesada. Cabe manter apropriada neutralidade.

Bem sei, leitor ou leitora, que isso pode ser difícil na prática. A subserviência pode ser repulsiva. Nem sempre, entretanto. A turma do visto permanente sabe disfarçar bem. Suas atitudes e opiniões­ mantêm um nível razoavelmente elevado. Chegam a ser sofisticadas às vezes. No Itamaraty, por exemplo, a turma em questão está muito bem representada. Com habilidade e destreza, os nossos diplomatas de punhos de renda emitem todos os sons e sinais requeridos para que eles e seus familiares integrem sossegadamente a turma do visto permanente.

Temas controvertidos têm de ser abordados com cautela especial. Por exemplo: BRICS e China. Nada de indicar inclinações pró-BRICS. Ao contrário, é fundamental mostrar reservas em relação ao grupo, visto às vezes como antinorte-americano. Caberia, inclusive, dizer que o Brasil é, dentro dos BRICS, um país que se esforça para evitar que o grupo se incline para um descabido antinorte-americanismo.

Talvez ainda mais importante seja marcar certa distância em relação à China. Nada prejudica mais as chances com os EUA do que passar a impressão de simpatias com a China. Assim, vale lembrar a interlocutores norte-americanos que o Brasil não aderiu à Nova Rota da Seda, a mais importante iniciativa internacional da China, apesar dos insistentes convites chineses. Isso soará como música para ouvidos norte-americanos. Afinal, a China é vista como a principal rival nos Estados Unidos.

Relativamente à China, os EUA vêm perdendo peso em termos econômicos, políticos e demográficos. O PIB da China, quanto à paridade de poder de compra, já é consideravelmente maior do que o dos EUA há vários anos. A China já leva vantagem na comparação com os EUA em matéria de progresso tecnológico em vários setores de vanguarda da economia.

Um calejado integrante da turma do visto permanente jamais cometerá erros desse tipo. Para ele, o importante é garantir acesso tranquilo aos Estados Unidos e usufruir de todas as oportunidades e atrativos que esse grande país oferece. Assim, deve ter na ponta da língua todos os elogios possíveis aos EUA e todas as restrições imagináveis à China e a outros países do “Eixo do Mal”, notadamente Rússia e Irã, que também integram, ­aliás, o problemático grupo BRICS.

Em situações de emergência, deve-se até indicar preferência pessoal pela saí­da do Brasil dos BRICS. Cabe lembrar que o Brasil é, antes de mais nada, parte do Ocidente profundo. Foi por um acaso histórico que o nosso país acabou sendo um dos fundadores desse grupo.

Há políticos importantes que já manifestaram o desejo de que o Brasil abandone os BRICS. Foi o caso de Jair Bolsonaro e Romeu Zema. Citá-los cairia bem, sem dúvida, mas seria ir longe demais. Um integrante respeitável da turma do visto permanente tem de preservar um mínimo de decoro. •

Publicado na edição n° 1382 de CartaCapital, em 08 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um novo conceito geopolítico’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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