Jamil Chade

Jornalista, correspondente internacional, escritor e integrante do conselho do Instituto Vladimir Herzog

Opinião

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Uma mulher e a bucha de canhão

Cresce a pressão pela escolha de uma secretária-geral na ONU

Uma mulher e a bucha de canhão
Uma mulher e a bucha de canhão
Michele Bachelet (Valter Campanato/Agencia Brasil)
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Começou a corrida eleitoral para a escolha do novo comando das Nações Unidas. O português António Guterres encerra o segundo mandato em 2026 e delegações de todo o mundo mergulham em um intenso lobby para a eleição. Por um princípio de rotatividade, caberia à América Latina assumir a entidade. Mas, desta vez, há outro argumento que ganha ainda mais intensidade: o de que, depois de 80 anos, a ONU tenha finalmente uma mulher como secretária-geral. “Já passou da hora de uma mulher ser escolhida”, disse o presidente da Estônia, Alar Karis, durante os discursos na Assembleia-Geral, em Nova York.

O governo brasileiro também defende que países latino-americanos indiquem apenas mulheres como candidatas e vê na medida uma forma de promover, de maneira mais ampla, a ideia da igualdade de gênero.

Se o processo de consultas sigilosas era evidente nos bastidores, a corrida ganhou o debate público depois de o Chile apresentar, oficialmente, a candidatura de Michelle Bachelet, ex-presidente do país, para o cargo máximo da diplomacia. O argumento de seus aliados é de que poucas personalidades poderiam superar suas credenciais. Ela foi a primeira mulher presidente na América do Sul, a primeira ministra da Defesa, foi exilada política depois do golpe de Augusto ­Pinochet e, ao longo dos últimos anos, ocupou cargos estratégicos na própria ONU. Sua candidatura é vista com bons olhos pelo Itamaraty. Sua simpatia por Lula é declarada e o brasileiro também já falou em gratidão diante do apoio dado durante os meses em que esteve preso.

Não foram poucos os embates entre Bachelet e o ex-presidente Jair Bolsonaro, que ironizou o assassinato de seu pai, um general opositor do ditador ­Augusto Pinochet. Em 2019, os comentários do brasileiro criaram um profundo constrangimento internacional para o País.

A escolha para a direção da ONU não se resume, porém, a uma simples votação. A candidata ou candidato precisa, antes, ser aprovado por consenso pelo Conselho de Segurança. Ou seja, não pode ser vetado por Grã-Bretanha, China, França, Rússia ou Estados Unidos. Esse é o detalhe que pode desmontar a articulação da indicação da chilena para o comando da organização. Um dos candidatos da região é o atual chefe da Agência Internacional de Energia Atômica, o argentino Rafael Grossi. Nos últimos meses, Grossi costurou uma aproximação do presidente Javier Milei e saiu em busca do apoio de Donald Trump. Se confirmada, a escolha do argentino violaria o compromisso de dezenas de delegações por uma mulher no comando. Mas tanto ele como outras potências pelo mundo sabem que, neste momento, contar com o apoio de Trump seria decisivo.

A entrada em jogo do argentino ainda mina a esperança das alas progressistas da América Latina por um amplo consenso em torno de Bachelet. Essa aliança seria importante para conquistar o apoio dos demais integrantes do Conselho de Segurança. Em maio, o presidente chileno Gabriel Boric pediu a Xi Jinping apoio à conterrânea. A sinalização foi de que a China estaria “disposta a considerar”, desde que ela tivesse amplo apoio na região.

Entre diplomatas, a perspectiva é de que os rachas políticos na América Latina se acentuem com a disputa pelo cargo de secretário-geral da ONU. Com uma forte aliança entre Milei e Trump, o Paraguai apoiaria Bachelet. Equador, Peru, El Salvador e uma dezena de governos caribenhos e centro-americanos também poderiam ser fortemente influenciados pela pressão norte-americana.

Entre as mulheres, há ainda a candidatura da ex-vice-presidente da Costa Rica, Rebeca Grynspan. Ela ganhou a confiança de europeus e russos ao negociar, em absoluto sigilo, o acordo que permitiu à Ucrânia continuar a exportar produtos agrícolas a despeito da guerra. Seu nome não é descartado em Washington.

Conhecido como “o emprego mais impossível do mundo”, o mandato de uma eventual futura secretária-geral traria desafios inéditos. A escolhida assumiria uma entidade sem recursos financeiros e obrigada a encolher para sobreviver. Uma das preocupações entre diplomatas é ainda de que seja transferida para a escolha da nova direção a profunda desconfiança entre governos. “Seria catastrófico um processo no qual o veto de um ou outro lado leve a uma ausência de decisão”, afirmou um experiente embaixador.

Um impasse e um cargo vago no posto mais alto da ONU seriam mais um prego no caixão da credibilidade da instituição, já seriamente abalada. •

Publicado na edição n° 1382 de CartaCapital, em 08 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Uma mulher e a bucha de canhão’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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