Cristina Serra

Paraense, jornalista e escritora. Autora, entre outros, de 'Tragédia em Mariana: a História do Maior Desastre Ambiental do Brasil' (Ed. Record)

Opinião

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Lula, Trump e 2026

O presidente brasileiro vive o melhor momento do mandato. E conta com a experiência do Itamaraty para não cair na arapuca do norte-americano

Lula, Trump e 2026
Lula, Trump e 2026
Os presidentes Lula, do Brasil, e Donald Trump, dos EUA. Fotos: EVARISTO SA / AFP e ANDREW CABALLERO-REYNOLDS / AFP
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Uma enorme expectativa foi criada em torno da possibilidade de uma reunião entre os presidentes Lula e Donald Trump, desde que este revelou, na Assembleia-Geral da ONU, que ambos haviam trocado cordialidades nos bastidores durante 39 segundos. Sem dúvida, o encontro seria um primeiro passo importante para distensionar a relação entre os dois países, depois da chantagem tarifária (associada à extinção do processo contra Jair Bolsonaro) e de todas as grosserias e mentiras ditas sobre o Brasil por Trump e alguns de seus principais assessores.

Contudo, passados os primeiros dias do aceno de Trump, não se tem notícia de nenhum avanço na construção da reunião ou mesmo de um contato telefônico. O histórico do norte-americano recomenda cautela. Useiro e vezeiro em armar emboscadas para presidentes de outros países nos salões da Casa Branca, ele já constrangeu Volodymyr Zelensky, da Ucrânia, e Cyril Ramaphosa, da África do Sul.

O próprio comentário de Trump, na ONU, fornece pistas nada auspiciosas sobre suas intenções para com o Brasil. Ele disse que só faz “negócios” com gente que gosta. Mais claro, impossível. Trump governa com mentalidade de empresário predador que quer se dar bem à custa dos outros. Não respeita a soberania de outros povos. Nem sabe o que é isso. Atropela o que for preciso para atingir seus objetivos.

Sua agressividade é tão desavergonhada que parte da imprensa norte-americana passou a chamar as políticas de seu governo de “Doutrina Donroe”, alusão à conhecida “Doutrina Monroe”, estabelecida em 1823 pelo presidente James Monroe, para definir as Américas como zonas de influência dos EUA. O princípio da hegemonia estadunidense foi adotado por vários de seus sucessores. Em 1901, Theodore Roosevelt ampliou a envergadura expansionista com a política do Big Stick (grande porrete), que atravessou o século XX e está na raiz do apoio a intervenções e golpes militares em países que consideram ser o seu backyard (quintal). Como fizeram aqui em 1964.

Trump lança mão da doutrina de 200 anos para tentar assegurar a supremacia estadunidense num mundo em transformação acelerada por vários fatores. Alguns mais evidentes: a ampliação planetária da influência da China e seu desenvolvimento tecnológico, a crise climática e a voracidade do oligopólio digital (basicamente, norte-americano) por recursos minerais no assombroso mundo novo da Inteligência Artificial.

O que Trump levará para a mesa com Lula? Por ora, aguardemos, confiando na competência da diplomacia nacional, orientada pela postura altiva de Lula na defesa da nossa soberania. Na Assembleia-Geral, o brasileiro não falou apenas para os Estados Unidos. Discursou para o mundo e para a história, sem esquecer nenhum dos temas espinhosos da geopolítica mundial. Foi a melhor de todas as suas apresentações na ONU.

Foi também em Nova York, na “Cúpula da Democracia”, com líderes da América Latina e da Espanha, que Lula pôs o dedo na ferida e refletiu sobre uma questão essencial também no front interno. “Em que momento a esquerda errou para permitir que a extrema-direita crescesse com a força que está crescendo? É virtude deles ou incompetência nossa?” Ele mesmo indicou respostas: “Porque muitas vezes a gente ganha as eleições com um discurso de esquerda e, quando a gente governa, a gente atende muito mais aos interesses dos nossos inimigos, da imprensa, do mercado, dos adversários”.

Lula faz o oportuno mea-culpa no melhor momento de seu terceiro mandato. A economia apresenta bons números (exceto os juros), a comunicação do governo melhorou, a pauta da justiça tributária chegou à opinião pública. Ele está mais confortável nas pesquisas e viu, no Senado, a derrota de uma aberração que a Câmara havia aprovado e que caiu na boca do povo como “PEC da Bandidagem”, porque não pode ser outra a definição da proposta derrubada.

Quando ainda era ameaça, a “PEC da Bandidagem” teve o único mérito de ser a força motriz que levou milhares de cidadãos às ruas numa tarde de domingo, convocados pela realeza da música popular brasileira. A manifestação de 21 de setembro, em Copacabana, foi protesto de 1968, foi todos os festivais da canção, foi campanha das “Diretas Já”, roda de samba e Avenida Sapucaí, com os nossos ídolos de cabelos brancos a nos dizer, com a força e a beleza de suas canções, o tanto que ainda temos por fazer, tanto por lutar, tanto por construir este País. Parece, enfim, que retomamos o fôlego das ruas. Estamos no melhor momento da travessia para 2026. •

Publicado na edição n° 1382 de CartaCapital, em 08 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Lula, Trump e 2026’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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