Economia

Os 50 anos de ‘Valor e Capitalismo’, de Luiz Gonzaga Belluzzo

Como Ademir da Guia em campo, o professor distribuiu passes, construiu jogadas, marcou golaços e, sobretudo, manteve a humildade jesuítica

Os 50 anos de ‘Valor e Capitalismo’, de Luiz Gonzaga Belluzzo
Os 50 anos de ‘Valor e Capitalismo’, de Luiz Gonzaga Belluzzo
Méritos. A influência de Belluzzo extrapola as salas de aula – Imagem: Arquivo/CartaCapital
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O ano era 1975. Na Copa anterior, disputada na Alemanha Ocidental, a Holanda de Cruyff havia massacrado a Seleção Canarinho. O “Divino” Ademir da Guia, craque da Segunda Academia palmeirense, assistiu ao espetáculo laranja do banco de reservas. Barrado por Zagallo, só teve a chance de tocar na bola na disputa pelo terceiro lugar, contra a Polônia, quando o Brasil já estava eliminado. Uma pena para o futebol.

Naquele mesmo 1975, Luiz Gonzaga Belluzzo, palmeirense aplicado, completava 33 anos — quase a mesma idade de Ademir, alguns meses mais velho. Nascido em 1942, um mês após a “Arrancada Heroica” que marcou a história alviverde, Belluzzo era torcedor de arquibancada do Parque Antártica, costume transmitido de berço e depois repassado aos filhos, Luísa e Carlos Henrique.

Ademir encerraria a carreira em 1977, mas ainda levaria o Palmeiras ao título paulista de 1976. Nesse mesmo agosto, ao ver o capitão erguer a taça, Belluzzo acabara de voltar de um breve exílio na França. Pouco antes, em dezembro de 1975, seu nome constava de uma lista secreta da ditadura, ao lado da poeta Hilda Hilst e do físico César Lattes. Classificados como “subversivos”, estavam, sob o peso do AI-5, literalmente marcados para morrer.

No Brasil que tentava respirar sob censura e violência, ecoava ainda a toada de Tobias Barreto, cantada desde o Largo São Francisco em 1964:

“Quando se sente bater

No peito heroica pancada,

Deixa-se a folha dobrada

Enquanto se vai morrer…”

Da “Arrancada Heroica” à “heroica pancada”, Belluzzo, o jesuíta da várzea, caminhava com uma geração de intelectuais que ousou plantar resistência pela via do pensamento. Ao lado de João Manuel Cardoso de Mello, Luciano Coutinho, José Migliori, Wilson Cano e, depois, Maria da Conceição Tavares e Carlos Lessa, fundou, sob a proteção do reitor Zeferino Vaz, o Mandarim, o núcleo que se transformaria no Instituto de Economia da Unicamp.

Conta João Manuel que, em um jantar ainda nos primeiros anos da universidade, um oficial militar questionou Zeferino sobre a presença de supostos comunistas [Belluzzo e ele próprio] sentados à mesa. A resposta do reitor foi seca e memorável: — O senhor cuide da sua tropa, que dos meus comunistas cuido eu.

A Escola de Campinas e o sopro antidogmático

Em seu início, o hoje prestigiado Instituto de Economia da Unicamp, ocupou as salas estreitas e mal ventiladas do Colégio Culto à Ciência. Com a inauguração do Campus da Unicamp, o DEPE manteve-se integrado ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).

A turma da primeira geração – tal qual a primeira academia de Ademir – contou ainda com a vinda de Carlos Alonso Barbosa de Oliveira, José Carlos de Souza Braga, José Serra, Paulo Baltar e Frederico Mazzucchelli, que chegaram com Conceição Tavares, após o Golpe que depôs Salvador Allende no Chile, em 1973.

Os tempos eram de ditadura, aqui e lá fora. Os tempos eram de censura, dentro e fora das universidades. O espaço era novo, pequeno e cuidadosamente vigiado pelos censores.

Nas lacunas entre o tempo e o espaço hostis, as mentes, jovens e experientes, criaram um ambiente livre e solidário, onde as ideias, que deram origem às teses originárias da Escola de Campinas, foram elaboradas, entre o auxílio fraterno e a igualmente fraterna peleja intelectual.

As preocupações fundamentais eram: as tendências da dinâmica capitalista no contexto da crise, que se iniciou nos anos 1970 e se aprofundou nos anos 1980; o desenvolvimento capitalista no Brasil, isto é, a teorização da ruptura com o padrão primário-exportador e da instalação do processo de industrialização, que se inicia em 1930 e atinge seu auge com o Plano de Metas; as bases teóricas da crítica à economia política que, na altura dos anos 1960 e 1970, estavam em crise eminente (uns dominados, ou pelos paroxismos dos manuais da Segunda Internacional, ou pelos becos da teoria do Imperialismo, outros emparelhados entre a crítica do Socialismo Real e as voltas e reviravoltas de uma nova teoria do valor, enunciada por Piero Sraffa em 1959).

Havia também, para a turma de primeira geração, um desafio, que os moveu e ainda move os esforços da Escola de Campinas: unir diferentes matrizes de pensamento que, a despeito de diferenças pontuais, apresentam uma visão complexa da dinâmica capitalista.

Unir autores como Keynes – que chegou (bem ou mal) ao Brasil pelas mãos de Eugênio Gudin em seus Princípios de Economia Monetária, -, Schumpeter e Kalecki (dos quais se tinha breve notícia nas faculdades de economia dominadas pelo ensino dos Fundations de Paul Samuelson) a Karl Marx cujas obra já circulavam nos espaços acadêmicos nacionais, desde Florestam Fernandes e Caio Prado Júnior, mas que ganharam impulso definitivo a partir do famoso grupo de leitura de O Capital, abrigado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP).

A corajosa disposição da turma de primeira geração em encarar tais desafios teóricos, políticos e éticos, no sentido, de negar-se ao dogmatismo dominante, antes e hoje, dentro da Academia, foi encarado, de início, como ecletismo barato por aqueles, que aqui e acolá, atribuem validade máxima e (até santificadora) à pureza das tradições.

Em contra-ataque, os mestres fundadores ousaram reunir de Max Weber a Karl Marx, deste a Keynes, do filósofo inglês ao austríaco Schumpeter, do húngaro e também Karl, Polanyi, ao polonês e economista Michael Kalecki. Esse espirito, que permanece vivo entre os estudantes e professores do Instituto de Economia até hoje, não responde apenas à negação do dogmatismo, mas à aplicação do que já ensinava Marx: não é possível entender a totalidade histórico-concreta sem investigar as múltiplas dimensões de seu movimento, antes de tudo dinâmico e contraditório.

Do ‘Valor e Capitalismo’ às metamorfoses do capital

Ao voltar ao Chile pouco antes do Golpe (já eminente) de 73, após breve visita à Unicamp, Conceição Tavares levou consigo uma notícia que causou espanto a todos os frequentadores da Escola Superior de Estudos Económicos Latino-Americanos (ESCOLATINA).

Alardeou Conceição: tem um maluco lá querendo fazer uma tese sobre valor e capitalismo…

Era Belluzzo, recusando-se a repetir manuais de distribuição entre salários e lucros. Interessou-se pela polêmica aberta por Piero Sraffa em Produção de Mercadorias por meio de Mercadorias (1959), obra que sacudiu os alicerces da teoria clássica do valor. Belluzzo enxergou ali a oportunidade de mostrar que Marx, ao contrário de Ricardo, não buscava reformar a teoria do valor, mas submetê-la à dinâmica da acumulação capitalista.

Sua tese Valor e Capitalismo propôs, com ousadia, a submissão da lei do valor como lei particular da lei da acumulação e, mais especificamente, da acumulação de riqueza abstrata, decorrência do conceito mesmo de Capital, como valor que se valoriza. Esta ousadia fundou a base da Crítica à Economia Política da chamada Escola de Campinas, inspirando as teses Contradição e Processo, de Frederico Mazzucchelli, A Temporalidade da Riqueza, de José Carlos Braga, entre tantas outras.

Quase 38 anos depois, Belluzzo, na altura dos seus 60 anos, dobrando a esquina em relação ao jovem que escrevera Valor e Capitalismo, publicou, em 2013, O Capital e Suas Metamorfoses.

Sem qualquer abuso, é pertinente dizer que a obra O Capital e Suas Metamorfoses do já renomado economista Belluzzo, é um avanço integral às ideias do jovem Belluzzo em seu Valor e Capitalismo. Ou melhor: a Tese de 1975 é em comparação à obra de 2013, como foram os grundrisse (alfarrábios) de Marx para o desenvolvimento posterior de O Capital.

Em O Capital e Suas Metamorfoses, Belluzzo propõe demonstrar os caminhos que levaram Marx à missão hegeliana de, num só golpe, reunir o método de análise à natureza de seu objeto, qual seja: o regime do capital, comprometido em realizar seus desígnios, de acumular riqueza abstrata, mediante os motores da contradição, entre o dinheiro como meio e fim da reprodução do capital e da potenciação da força de trabalho em contraste com sua base estreita, isto é, a apropriação do tempo de trabalho.

Desta feita, tal como abordado em Valor e Capitalismo, O Capital e suas Metamorfoses persegue as pegadas de Marx na reconstituição lógico-genética das categorias que ordenam o movimento e as metamorfoses do capital.

Das raízes plantadas por Luiz Gonzaga Belluzzo e de sua incansável generosidade, gerações de economistas foram formadas, seguindo cada qual seu destino, mas jamais deixarando de reconhecer a importância de Belluzzo em suas formações.

Como Ademir Da Guia, Belluzzo, generosamente, segue, tal qual em seus tempos de jogador na várzea, marcando golaços, oferecendo generosas assistências e ofertando aos seus amigos, companheiros e alunos, – não importando a idade e o status que tenham – a humildade jesuítica própria a um devoto de Santo Inácio de Loyola.

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