A Redoma de Livros por Clarissa Wolff

A loucura feminina de Carmen Maria Machado

“O corpo dela e outras farras” é considerado um Black Mirror feminista

A loucura feminina de Carmen Maria Machado
A loucura feminina de Carmen Maria Machado
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É curiosa a desumanização que acontece quando você está em um sanatório, hospício, clínica psiquiátrica. Você vira louca. 

Eu não disse: “você enlouquece”, ou “você estava louca”. Você é, de forma pontual, em um estado independente do mental, formado muito mais por um rótulo. Você foi louca, em uma conspiração que mata a própria lógica.

Ser louca é uma coisa estranha.

Toda a minha vida foi construída em cima de longos discursos e brigas carregadas de argumentos, culpa de meu Marte em gêmeos ou de pais que me ensinaram a lutar pelo que eu queria ou de uma teimosia que não me deixava caber cem por cento no que eu, como boa menina, devia ser.

Mas o rótulo é a impunidade de quem rotula. Não existe argumento lógico quando se é louca. É fácil lidar com alguém assim.

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O conto O ponto do marido, de Carmen Maria Machado, não fala sobre loucura, não entrega respostas, não tem moral da história. E mesmo assim eu sei exatamente sobre o que ele fala. Tenho vontade de entregar o texto a homens e pedir que me expliquem, que me falem sobre o que o texto fala, e analisar essas respostas. Vão dizer que é bobo, que não faz sentido? Vão tentar desvendar camadas de metáforas?

O título do conto é o nome dado a um fenômeno secreto do mundo da obstetrícia. Muitas mulheres têm a região entre a vagina e o ânus cortada para facilitar o parto – ao costurar, o médico acrescenta um ponto para apertar a vagina e aumentar o prazer do marido.

Em um ensaio para o Electric Literature, uma cena real dessas é descrita e o médico e o marido riem, em uma cumplicidade masculina em que a violência contra a mulher é um problema colateral, nem ao menos considerado. 

O estupro, o aborto, as mortes. Carmen Maria Machado não fala de nada disso em seu conto. No lugar, fala de uma fita, uma fita no pescoço da mulher que poderia não fazer sentido nenhum além da ambição do marido de tocá-la, a única coisa que lhe é negada. Se passam anos e anos até que ela consinta. Ser traída por um dos bons é pior?

Eu não sei, e eu fui. 

A protagonista de O ponto do marido é uma grande contadora de histórias e insere fábulas de terror para pincelar o andamento do conto. O efeito narrativo é secundário perto do emocional.

Vou contar uma história também, então. Essa foi trazida por uma amiga sobre sua amiga. A amiga – não a minha, a protagonista da história – costumava fumar maconha ou tomar chá de cogumelos ou LSD ou aiahuasca com o namorado ou marido.

Eu não lembro bem os detalhes, mas a verdade da história independe deles. Era algo alucinógeno, os dois ficavam loucos juntos, e eles faziam coisas tipo ver Netflix ou conversar ou transar. Um dia, ela contou que todas as vezes, em algum momento, ela via ele com chifres, fumaça vermelha, olho inteiro preto, como um demônio ou um monstro.

Eu fiquei assustada, até que ela – a minha amiga – me explicou a moral da história: mesmo amando ele, ela tinha medo. Ela tinha medo porque sabia que ele, por ser homem, sempre seria um monstro.

carmenO CORPO DELA E OUTRAS FARRAS, Carmen Maria Machado

Tradução de Gabriel Oliva Brum

Planeta de Livros, 2018

240 páginas

R$49,90 

 

 

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