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Sob a guarda de terceiros

Tribunal de Contas suspende a privatização da Celepar, que armazena dados sensíveis de milhões de cidadãos

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Mentor. Alex Canziani, secretário estadual de Inovação e Inteligência Artificial, conduz a venda da estatal – Imagem: Pedro Ribas/GOVPR e Felipe Barboza/Celepar/GOVPR
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Após entregar à iniciativa privada empresas estratégicas de energia, sanea­mento e infraestrutura, o governador Ratinho Júnior agora se apressa para vender a ­Celepar, a primeira estatal de Tecnologia da Informação do Brasil, fundada em 1964. Em novembro, a Assembleia Legislativa aprovou, a toque de caixa, a privatização da companhia, responsável por processar e armazenar dados sensíveis do governo estadual e de milhões de paranaenses, de prontuários médicos a informações fiscais. Enviado pelo Executivo, o projeto tramitou em tempo recorde, apenas nove dias. Não fosse a postura mais cautelosa do Tribunal de Contas do Estado, a venda poderia ter sido sacramentada sem estudos consistentes nem ações para mitigar os riscos associados à saída do Estado do controle da Celepar.

A privatização da companhia tem sido alvo de críticas, disputas judiciais, protestos de servidores e suspeitas de interesses ocultos. Com um quadro de 980 funcionários, a estatal é responsável por mais de mil sistemas que integram o governo do Paraná e os cidadãos em áreas como saúde, segurança, educação e arrecadação. “Vender a Celepar significa abrir mão do controle sobre informações que impactam diretamente a vida da população”, alerta o deputado estadual Arilson Chiorato (PT).

Na época em que propôs a venda, o governador justificou que ela geraria uma economia anual de 19 milhões de reais com a extinção de 40 cargos comissionados. A narrativa oficial não resiste, porém, à checagem dos fatos. Dados do Portal da Transparência mostram que esses postos foram mantidos e, em alguns casos, redistribuídos a aliados políticos, com salários até 2,5 vezes superiores aos dos servidores concursados. A solução poderia ser mais simples. Bastaria eliminar os cargos em comissão e valorizar o corpo técnico sem recorrer à privatização. A pressa em fechar o negócio abre, porém, uma interrogação incômoda. Por que desmontar uma empresa autossustentável e referência nacional em tecnologia pública?

Em duas audiências públicas – a primeira em Curitiba, em 15 de setembro, e a segunda em Brasília, na terça-feira 23, por iniciativa do deputado federal Tadeu Veneri (PT) – nenhum representante da Celepar ou do governo do Paraná compareceu. Na ocasião, Veneri disse que Ratinho Jr. orientou órgãos estaduais a renovar por cinco anos os contratos com a ­Celepar, cujos valores podem ultrapassar 2 bilhões de reais. O comprador herda todos os convênios. “Se a empresa for vendida, toda a estrutura pública do Paraná ficará atrelada à sua sucessora. Um absurdo que não podemos permitir”, alerta o parlamentar. “Mas o maior risco é entregar a soberania digital do Paraná nas mãos de terceiros.” Logo após esta última audiência, as direções do PT e do PSOL anunciaram que vão ingressar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a Lei Estadual 22.188/2024, que autorizou a venda da companhia.

Diante desse cenário nebuloso, o TCE suspendeu o processo de privatização por meio de uma liminar concedida pelo conselheiro-substituto Lívio Fabiano Sotero­ Costa. Ele apontou risco de prejuízo econômico, falhas na governança de Tecnologia da Informação e descumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados. A decisão foi posteriormente mantida pelo conselheiro-titular Fernando Guimarães. Ambos demonstraram preocupação com a dependência tecnológica do governo estadual, dada a dificuldade de internalizar e de terceirizar os produtos e serviços fornecidos pela Celepar.

Enquanto isso, uma ação popular em curso na 2ª Vara da Fazenda Pública de Curitiba aponta diversas irregularidades na gestão da companhia. De acordo com Paulo Jordanesson Falcão, advogado­ do Comitê de Trabalhadores Contra a Privatização da Celepar, não houve uma análise técnica consistente nas decisões da estatal, predominando um discurso superficial de redução de custos com cargos comissionados, acompanhado por um aumento de contratações sem licitação. Entre as falhas identificadas está a violação do princípio da segregação de funções: embora a empresa conte com 940 servidores concursados, a fiscalização e a execução de contratos milionários ficam a cargo de ocupantes de cargos comissionados – prática que contraria a legislação de licitações.

A ação também aponta uma concentração de atribuições nas mãos do diretor-financeiro, administrativo e jurídico da ­Celepar, Guilherme de Abreu Silva. Conforme o processo, ele acumula responsabilidades que vão desde a elaboração de contratos e emissão de pareceres jurídicos até a aprovação final das contratações – funções que deveriam ser distribuídas para garantir um controle interno adequado e minimamente confiável. “Com a inobservância do princípio da segregação de funções, a Celepar vem firmando contratos por procedimentos que geram, ao menos, dúvidas razoáveis sobre sua conformidade legal”, destaca o documento.

O comprador pode herdar mais de 2 bilhões de reais em contratos com o governo estadual

As inconsistências apontadas reforçam dúvidas sobre a governança da estatal e levantam questionamentos sobre a legalidade de negociações milionárias, como a assinatura de contratos sem licitação com a consultoria Ernst & Young, totalizando mais de 11,3 milhões de reais. Um deles, no valor de 8,7 milhões, refere-se a serviços de consultoria técnica para o processo de desestatização, enquanto o outro, de 2,6 milhões, é para estudos sobre o posicionamento estratégico da companhia, ambos questionados por suposta inexigibilidade indevida e falta de transparência.

Outro ponto questionado é a contratação do escritório Stocche, Forbes, Passaro e Campos Sociedade de Advogados, no valor de 1,09 milhão de reais, feita por inexigibilidade de licitação. O caso ganhou destaque porque, no site da Celepar, o contrato e seus documentos foram classificados como confidenciais, com acesso restrito – medida que, segundo a ação, viola a Lei 12.527/2011, que assegura o direito à informação. “É inadmissível atribuir sigilo a um contrato acima de 1 milhão de reais sem qualquer justificativa”, critica Falcão.

O Ministério Público do Paraná também instaurou investigação para apurar possíveis irregularidades em uma parceria sem licitação entre o governo do Paraná e o Google, intermediada pela Celepar. A denúncia questiona a adoção do Google Workspace nos órgãos públicos e a transferência de dados internos da estatal para servidores da big tech. Caso a contratação seja efetivada, o valor da negociação pode chegar a 640 milhões de reais.

Responsável pelo processo de desestatização, o secretário estadual de Inovação e Inteligência Artificial, Alex ­Canziani, tem repetido que o governo do Paraná irá responder a todos os questionamentos do TCE. Em nota, a Secretaria de Comunicação disse que a venda da Celepar visa “acompanhar tendências globais do mercado de tecnologia e oferecer serviços mais rápidos, modernos e acessíveis”. E acrescentou que “a mudança no controle acionário não altera as regras consolidadas de proteção aos dados pessoais”. •

Publicado na edição n° 1381 de CartaCapital, em 01 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sob a guarda de terceiros’

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