Política
Dados em casa
Em nome de uma duvidosa soberania digital, o governo lança ofensiva bilionária para atrair data centers ao País


Uma reunião de última hora, marcada em meio à intensa agenda oficial cumprida pelo presidente Lula durante sua passagem por Nova York, revelou a importância dada pelo governo brasileiro à política de expansão do número de data centers no País. Ao lado do governador do Ceará, Elmano de Freitas, e do ministro da Educação, Camilo Santana, Lula teve um encontro de 30 minutos com Shou Zi Chew, CEO do TikTok, rede social controlada pela empresa chinesa ByteDance. Na conversa, foram discutidos os detalhes do investimento chinês, estimado em 55 bilhões de reais, destinado à construção de um data center na cidade de Caucaia, localizada na zona de influência do semiárido cearense.
A escolha de Caucaia deu-se por sua proximidade com o Porto do Pecém e a rede de cabos submarinos de fibra óptica. O TikTok vai construir na cidade uma estrutura com mais de 85 mil metros quadrados que abrigará um supercomputador responsável por processar dados e tarefas de Inteligência Artificial. Sua instalação é vista como estratégica pelos governos federal e estadual, mas também suscita discussões quanto à sua pertinência, já que data centers costumam gerar poucos empregos, além de consumir quantidades estratosféricas de energia e água – a primeira para manter o funcionamento e a segunda para resfriar os poderosos computadores.
Nos últimos anos, o interesse das big techs em instalar centrais de processamento no Brasil vem crescendo. Um estudo divulgado neste mês, encomendado pelas empresas ao BTG Pactual, aponta que o País, ao lado do Chile, “pode tornar-se um verdadeiro paraíso para os data centers”, graças à ampla disponibilidade de água, à capacidade de geração de energia elétrica e à infraestrutura de comunicação existente. Mais de 30 solicitações de análise para implantação dessas estruturas estão atualmente em avaliação pelo governo. Antecipando o que promete ser um boom no setor, o presidente Lula assinou, em 17 de setembro, a Medida Provisória que cria o Redata, programa federal de estímulo à chegada de data centers no Brasil.
Além do elevado consumo de água e energia, especialistas alertam: o controle dos dados segue nas mãos das big techs
A MP antecipa medidas previstas na Reforma Tributária apenas para 2027 e concede, pelos próximos cinco anos, isenção total de IPI, Cofins e PIS/Pasep às empresas que instalarem data centers no Brasil. A desoneração vale para equipamentos de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), inclusive os importados que não tenham similares produzidos no País – estes também estarão livres do imposto de importação. Segundo estimativa do Ministério da Fazenda, a renúncia fiscal deve alcançar 7,5 bilhões de reais. Em contrapartida, o governo espera atrair até 2 trilhões de reais em investimentos ao longo da próxima década.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirma que o Redata é essencial para “garantir a soberania digital”, uma vez que apenas 40% das informações geradas no Brasil são atualmente tratadas em território nacional. “Hoje, 60% dos nossos dados rodam nos Estados Unidos. Queremos trazer esse processamento para cá e prover o serviço a preços mais baratos para os brasileiros”, disse Haddad, após a assinatura da MP que institui o programa. A meta do governo é reduzir esse índice externo para, no máximo, 10%. Para incentivar o desenvolvimento de tecnologia própria, as empresas participantes do Redata deverão destinar ao menos 2% de seus investimentos à formação de cadeias produtivas digitais no País.
Na avaliação do sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, pesquisador das implicações sociais da IA, o Redata é importante, mas insuficiente para garantir a almejada soberania de dados. “Sem dúvida, o Brasil precisa de uma política de data centers, uma vez que os dados são elementos de alto valor econômico e o insumo fundamental da IA. O governo deu um passo fundamental, construindo uma política específica para esse segmento estratégico da economia contemporânea. No entanto, apenas a localização de dados no Brasil não garante a nossa soberania”, pondera. Para o professor da UFABC, não adianta atrair big techs ou armazéns de dados de propriedade dos grandes fundos do capital financeiro. “Não há soberania se os dados estratégicos do governo, da saúde, da educação, dos programas sociais, estiverem sob o controle de empresas de tecnologia estrangeiras”, lembra.
Agenda. Na companhia do governador Elmano de Freitas, Lula negociou com o CEO do TikTok a instalação de um data center no Ceará – Imagem: Ricardo Stuckert/PR
Amadeu também critica a ideia de que a aquisição de soluções das gigantes do setor represente controle dos dados. “Quando gestores do Serpro e da Dataprev dizem possuir soberania ao contratar produtos da Amazon, Microsoft ou Oracle, rotulados de ‘nuvem soberana’, isso não passa de uma operação de marketing.” Ele lembra que leis como o Cloud Act, em vigor nos EUA, determinam que os sistemas de empresas do país obedeçam às ordens do governo norte-americano. “Trata-se da jurisdição expandida que o governo Trump exige que se realize, mas que é antiga. Basta lembrar as denúncias feitas por Edward Snowden.” Mais recentemente, acrescenta o professor, o secretário de Estado Marco Rubio ordenou o bloqueio de todos os arquivos digitais do procurador do Tribunal Penal Internacional, após ele expedir um mandado de prisão contra o premier israelense Benjamin Netanyahu por crimes em Gaza. “A Microsoft cumpriu a determinação.”
Outro problema inerente aos data centers é seu impacto ambiental. Uma pesquisa realizada pelo Laboratório de Políticas Públicas e Internet (Lapin) aponta que, nos últimos quatro anos, a corrida tecnológica pela Inteligência Artificial fez com que as big techs aumentassem consideravelmente suas emissões de carbono, com destaque para a Amazon, com 33,3% de crescimento, e o Google, que registrou impressionantes 73,8%. As duas empresas compõem, ao lado da Microsoft (23,4% de alta nas emissões), a santíssima trindade do mercado global de computação em nuvem, base das operações de IA. Segundo o estudo, a água exigida pelos data centers foi responsável por 96% do consumo total pelas big techs.
As empresas que aderirem ao Redata deverão utilizar fontes de energia limpa e terão seu consumo de água delimitado por um Índice de Eficiência Hídrica, que quantificará quantos litros são necessários para resfriar a infraestrutura por kWh de energia consumida pelos servidores. Quanto mais baixo o valor, maior será a eficiência hídrica. Essas medidas não são, porém, suficientes do ponto de vista ambiental, afirma Amadeu. Para ele, “o índice de eficiência não diz quais as fontes de captação da água, não impede que a água seja obtida em áreas de escassez ou de fontes potáveis, nem define o descarte da água utilizada, o que pode gerar poluição e outros problemas ambientais”. Falta ao Redata, acrescenta o especialista, a exigência de um relatório específico de impacto ambiental produzido por uma entidade independente da empresa e escolhida pela agência setorial incumbida de fiscalizar a implementação e a operação dos data centers.
O Ministério da Fazenda prevê uma renúncia fiscal de 7,5 bilhões de reais
Diretor do Instituto E+, o engenheiro ambiental Clauber Leite afirma que, com as políticas corretas, o Brasil pode transformar o desafio ambiental dos data centers em oportunidade e liderar pelo exemplo. “O crescimento da IA elevou significativamente o consumo de energia e água nos data centers, o que pressiona as metas climáticas, mas isso não precisa ser uma contradição.” Leite avalia que o governo deu um passo relevante ao tratar a questão ambiental no licenciamento, uma vez que a legislação considera os data centers como uma atividade de alto impacto. “Esse enquadramento garante um filtro importante e um nível de escrutínio necessário a cada novo projeto”, explica.
O desafio, no entanto, é ir além. “A política para os data centers pode ser aprimorada para transformar o crescimento da IA em vetor de sustentabilidade. Se forem incorporados critérios claros de adicionalidade em energia renovável para assegurar que uma nova capacidade limpa seja instalada, a inclusão de sistemas de armazenamento para dar firmeza ao sistema elétrico e metas de eficiência energética e hídrica, nós mudamos o jogo.” Para o especialista, se conseguir realizar essa importante tarefa, o Brasil pode demonstrar ao mundo que é possível desenvolver infraestrutura digital de ponta sem transferir os custos ambientais e energéticos para a sociedade. “Assim, os data centers, impulsionados pela IA, deixam de ser um novo problema e passam a ser parte ativa da solução climática.”
Caucaia. O projeto prevê uso de fontes renováveis de energia, como as eólicas offshore, mas a população da cidade cearense teme um estresse hídrico na região – Imagem: Sara Café/Engajamundo e iStockphoto
Outros gargalos são de ordem operacional, uma vez que, no Brasil, há dificuldade de conexão dos grandes consumidores de energia elétrica ao Sistema Interligado Nacional, o que pode impedir a expansão dos atuais 165 data centers espalhados pelo País, em sua grande maioria na Região Sudeste. “Não dá para tratar dos data centers sem o contexto do modelo onde estarão inseridos, dado o enorme impacto que terão. Vão ficar com as fontes mais baratas e se servir de forma predatória do frágil e deficiente sistema de transmissão? Ou serão uma alavanca para contribuir com o saneamento e resgate do modelo do setor elétrico?”, questiona o professor Ildo Sauer, um dos maiores especialistas em energia do País.
Sauer afirma que a situação é paradoxal: “Há recursos para aumentar muito a capacidade de geração elétrica, acomodar data centers, eletrificar toda a frota veicular do Brasil e promover o aumento de consumo de energia e bem-estar da população, além de alavancar a reindustrialização do País com preços de energia que permitam a competitividade internacional. Mas, com esse modelo em vigor, está acontecendo o contrário. Todas as potenciais vantagens comparativas estão sendo predadas por grupos de interesse com a cumplicidade de agentes públicos e do próprio Congresso”.
Para o setor privado, que aplaudiu o Redata, os principais desafios do programa estão relacionados à capacidade e à organização da rede elétrica. “Qualquer empreendimento de grande porte demanda conexões robustas ao Sistema Interligado Nacional, um processo complexo. A complexidade de conectar grandes clientes à rede de distribuição configura um dos obstáculos mais relevantes, podendo retardar o desenvolvimento do setor. Isso evidencia a importância de maior coordenação entre o Poder Público, as concessionárias de distribuição e o setor privado”, diz Marcos Siqueira, CRO da empresa Ascenty. •
Publicado na edição n° 1381 de CartaCapital, em 01 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Dados em casa’
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