Economia

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Shangri-lá: um paraíso imaginário

No mundo das certezas, a economia não se move e é sempre igual, ancorada nas expectativas racionais

Shangri-lá: um paraíso imaginário
Shangri-lá: um paraíso imaginário
Paraíso. O céu dos economistas mainstream é a busca das crenças neuróticas do equilíbrio e se algo estiver fora da ordem, basta colocar nos trilhos – Imagem: iStockphoto
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Shangri-lá é um paraíso terrestre fictício, um vale místico e utópico localizado nas montanhas do Tibete. No Ocidente, tornou-se sinônimo de uma utopia remota e exótica que representa o anseio por um mundo perfeito e harmonioso.

O Shangri-lá dos economistas ­mainstream é a busca das crenças neuróticas do equilíbrio. Se algo estiver fora da ordem, basta colocá-lo nos trilhos do equilíbrio.

Grande representante da dita ciência econômica, Sebastian Edwards apresentou em uma palestra no Banco de Compensação Internacional (BIS) seus argumentos a respeito da crença equilibrista.

Edwards empenha-se em perquirir as condições de equilíbrio na relação entre taxas de câmbio e a política monetária. Recentemente, percebeu que havia algo de estranho ou errático na determinação da taxa de juros no regime de metas. Rea­lizando testes de hipóteses com modelos econométricos, constatou um contágio das decisões do Banco Central norte-americano nas decisões dos demais Bancos Centrais. O que nós pobres mortais chamamos de arbitragem de juros, diferença entre taxa de juros interna e externa, nosso cientista chama de contágio. E indagou: quem influencia quem? A taxa de juros em relação à taxa de câmbio ou vice-versa? Para dirimir a controvérsia valeu-se do modelo DSGE (Modelo Dinâmico Estocástico de Equilíbrio Geral) no propósito de impedir a contestação dos economistas do mainstream. (Estes poderiam alegar blasfêmia teórica.)

Em sua caminhada, Edwards chegou a duas conclusões importantes: exceto o Banco Central norte-americano, nenhum Banco Central é totalmente independente para fixar sua taxa de juros no regime de meta de inflação, a outra, e os testes econométricos cravaram, com conta de capital aberta e livre movimentação de capitais, a taxa de câmbio é variável que influencia a determinação da taxa de juros.

Delfim Netto. É ridículo dizer que a política do BC namora a heterodoxia – Imagem: Redes Sociais

“Os modelos que enfatizam movimentos de capital têm-se centrado no carry trade como um dos principais determinantes das taxas de câmbio no curto prazo. Nesses modelos, uma taxa básica de juros mais baixa gera saídas líquidas de capital e, consequentemente, tende a desvalorizar a moeda (Sebastian Edwards).”

Edwards percebe que algo não vai bem no reino do regime de metas inflacionárias. A independência dos Bancos Centrais, exceto o Banco Central norte-americano, não passa de crença na efetividade de normas e regulações.

A celebrada independência operacional não significa independência de fixar a taxa de juros. Os países de moeda não conversível estão obrigados a reagir às decisões de Washington. A arbitragem e a transmissão dependem do grau de abertura da conta de capitais.

Mas Edwards, como tantos outros, não consegue livrar-se de dogmas e crenças. É refém do Shangri-lá do equilíbrio.

“Podemos, portanto, chamar uma crença de ilusão quando uma realização de ­desejo constitui fator proeminente em sua motivação e, assim procedendo, desprezamos suas relações com a realidade, tal como a própria ilusão não dá valor à verificação (Freud, O Futuro de Uma Ilusão).”

Edwards propõe uma solução para o “desequilíbrio” constante que marca o curso das economias capitalistas. Para a ortodoxia, nada mais constrangedor que admitir desequilíbrios constantes.

Investigações não alinhadas ao ­mainstream oferecem argumentos para afirmar que os desequilíbrios estão inscritos na estrutura e dinâmica do capitalismo. Postular uma meta de taxa real de câmbio de equilíbrio a longo prazo é mais uma aventura das mentes arraigadas às crenças do positivismo.

Nos momentos de controvérsia aguçada, os príncipes e sacerdotes da Ciência Econômica (sic) convocam os Quatro Cavaleiros da Ortodoxia – Naturalismo, Individualismo, Racionalismo e Equilíbrio – para espaldeirar a visão que afirma as permanentes oscilações nas relações entre câmbio e juros.

No entanto, as relações entre câmbio e juros assombram o mundo da racionalidade e do equilíbrio, como o fantasma de Banquo assombrava Macbeth. Se já é difícil prever a taxa de câmbio nominal de amanhã, é estapafúrdio fixar a taxa de câmbio real de equilíbrio, o Shangri-lá da utopia algébrica perfeita. Fixar uma taxa de câmbio de equilíbrio de longo prazo é imobilizar os movimentos que definem as relações entre inflação, juros e contas externas.

Se já é difícil prever a taxa de câmbio nominal de amanhã, é estapafúrdio fixar a taxa de câmbio real de equilíbrio

Aqui vamos homenagear Antônio Delfim Netto: “Lembremo-nos, apenas, que os mesmos economistas, há pouco tempo, acreditavam na mágica das ‘expectativas racionais’ como o ‘estado da arte’ da ortodoxia. Podemos e devemos divergir (porque é assim que aumentamos o nosso conhecimento), mas é ridículo dizer que a política do Banco Central namora a ‘heterodoxia’. Por quê? Pela simples e boa razão religiosa de que, infelizmente, a ‘ortodoxia’ não existe…”

A progressiva abertura das contas de capital desde o fim dos anos 70 suscitou a disseminação dos regimes de taxas de câmbio flutuantes, tornando dominante a dimensão financeira nas “relações de troca” entre as moedas nacionais, em detrimento de sua função de preço relativo entre importações e exportações. As flutuações do câmbio ensejaram oportunidades de arbitragem e “especulação” ao capital financeiro internacionalizado e tornaram as políticas monetárias e fiscais domésticas reféns da volatilidade das taxas de juro e das taxas de câmbio.

No mundo das certezas, a economia está agarrada inexoravelmente ao equilíbrio de longo prazo, graças à operação das “forças naturais” do mercado, as sedutoras valquírias da eficiência, empenhadas na cavalgada rumo ao Valhalla do produto potencial, ou seja, aquele que supõe uma permanente trajetória de equilíbrio de pleno emprego sujeita apenas a sua­ves flutuações. Nessa concepção, a economia não se movimenta. É sempre igual a ela mesma, ancorada nas expectativas racionais do “agente representativo”.

Agora só falta incluir no regime de metas de inflação, a meta de taxa de câmbio de equilíbrio de longo prazo!

Credo quia absurdum (Creio porque é absurdo). •

Publicado na edição n° 1381 de CartaCapital, em 01 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Shangri-lá: um paraíso imaginário’

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