Cultura
Ópera entre tijolos
O Theatro Municipal de São Paulo transporta a célebre peça, com música de Gershwin, para a periferia brasileira


E a presença de um elemento tradicional e simbólico da cultura periférica brasileira que transporta imediatamente Porgy and Bess, em cartaz até o sábado 27 no Theatro Municipal de São Paulo, do universo norte-americano da década de 1930 para o Brasil atual: o tijolo baiano.
Imenso, ele domina o cenário, com seus furos se transformando nas moradias empobrecidas encontradas em todo o País. Embora concebida há quase cem anos, com personagens da comunidade negra da Carolina do Sul, nos EUA, a ópera retrata um dia a dia não muito diferente daquele do povo periférico de grandes capitais brasileiras.
As similaridades são realçadas pela direção cênica de Grace Passô e pela acertada cenografia criada por Marcelino Melo. Jogos, apostas, drogas, traficantes, órfãos, subemprego, violência, preconceito e miséria são vistos dentro do contexto de uma história de amor improvável.
“O que se vê é uma atualização da performance e da cenografia e figurinos que realçam a identidade negra do universo periférico brasileiro”, explica. Grace, que também é atriz, é a primeira diretora negra a encenar a ópera no Brasil, ao lado de um elenco predominantemente negro.
O tijolo baiano, imenso, domina o cenário. Já a coreografia inclui danças de rua
Em entrevista a CartaCapital, ela conta que a montagem é uma tentativa de iluminar a obra quase centenária com todas as reflexões que as comunidades negras trouxeram ao longo dos anos, sem alterações no texto e música, mas traçando paralelos com a atualidade por meio de ajustes estéticos e de atuação.
“Um espaço menos realista do que o das montagens convencionais e as roupas contemporâneas vestidas pelos atores são formas de aproximação dessa história com o nosso tempo”, afirma.
Com pouco mais de três horas de duração, Porgy and Bess conta a história do velho mendigo e deficiente físico Porgy, apaixonado por Bess, jovem viciada em drogas entregue a relacionamentos abusivos. Quando seu amante, Crown, se envolve em um crime e precisa fugir, ela é rejeitada pela comunidade, e encontra proteção e acolhimento apenas em Porgy.
A música foi criada por George Gershwin (1898–1937) e a história é baseada no livro Porgy (1925), de DuBose Heyward (1885–1940), que foi inspirado em uma matéria de jornal. Heyward também é o responsável pelo libreto da ópera, tendo escrito as letras com o irmão e parceiro de George, Ira Gershwin (1896–1983).
Amante de jazz, blues e canções gospel, o compositor debruçou-se sobre a música do Sul dos EUA para fazer a trilha sonora da comunidade ficcional onde se desenrola a trama. Para se inspirar, ele chegou a viver em uma ilha na costa da Carolina do Sul e a conviver com a comunidade local e visitar igrejas e corais.
Muitos consideraram tratar-se de uma apropriação da cultura afro-americana por brancos, mas, ao longo do tempo, a ópera foi sendo incorporada pela cultura negra e gerou clássicos atemporais como Summertime, It Ain’t Necessarily So, I Loves You, Porgy and Bess, You Is My Woman Now.
Summertime ganhou vida em gravações de Miles Davis, Charlie Parker, Louis Armstrong, Ella Fitzgerald e Billie Holiday; foi popularizada entre os roqueiros por Janis Joplin; e pode ser ouvida em versão pop mais recente de Lana Del Rey e Brian Wilson, dos Beach Boys. No Brasil, Caetano Veloso, Cazuza e Cida Moreira foram alguns dos artistas a se debruçar sobre a canção.
Lançada em 1935, Porgy and Bess foi revolucionária desde a sua estreia no Alvin Theatre, em Nova York, ao trazer um elenco principal majoritariamente negro e fundir música erudita com “música negra”representada por jazz, blues e os gospels das igrejas pentecostais.
Apesar de uma temporada inicial de 124 apresentações, o espetáculo não foi considerado um sucesso e a crítica torceu o nariz para o que chamou de “ópera popular”.
Visões. Foi a partir da montagem de 1976, pela Houston Grand Opera, que Porgy and Bess ganhou fama. Abaixo, a versão de 2019, no Metropolitan Opera – Imagem: Acervo/Metropolitan Opera e Acervo/Houston Grand Opera
A obra só foi conquistando notoriedade ao longo dos anos, principalmente depois da primeira remontagem, feita pela Houston Grand Opera em 1976. No Brasil, ela foi apresentada na íntegra pela primeira vez em 1992, no Theatro Municipal de São Paulo, em montagem importada da Opera da Virginia, que estava em turnê pela América do Sul.
“A atual montagem é a primeira a ser produzida totalmente pelo Theatro Municipal de São Paulo e também com um elenco praticamente negro”, conta Grace. A montagem manteve intacta a estrutura musical original, sob direção do maestro Roberto Minczuk junto à Orquestra Sinfônica Municipal. O libreto tampouco foi alterado.
O que a visão de Grace faz é deixar aflorar a sensibilidade social já existente no texto por meio de interpretações voltadas para a questão identitária.
“Gosto de falar que fiz uma reescrita, com nossos pobres, nossas referências da cultura negra, com adoção de roupas urbanas e também no trabalho corporal”, diz ela. Em meio ao enredo, dançarinos se movem ao som de jazz e de blues em passos de danças urbanas e de rua – como break, vogue e o krump.
Numa cena de tempestade, quando a comunidade pede proteção a Deus, a coreografia revela o bordado complexo da religiosidade das comunidades, com os bailarinos juntando gestuais vistos em templos evangélicos com danças de terreiro.
Integrante do seleto grupo de dramaturgos que receberam dois prêmios Shell, Grace Passô afirma que montar essa ópera hoje é extremamente pertinente, devido à grandeza das composições musicais, mas também pela exigência de que seja criado um elenco negro.
“É extremamente importante que isso esteja acontecendo no mundo da ópera, onde essa combinação é rara”, afirma. Para ela, é a oportunidade de mostrar a dimensão das comunidades negras como um lugar “efervescente, de resistência e sobrevivência”.
Em um elenco afinado e afiado, que desfia letras e diálogos em inglês – com legendas em uma tela –, incorporando os erros gramaticais e palavras em dialeto das comunidades negras americanas como se estivesse cantando uma cantiga de roda, destacam-se o Porgy de Luiz-Ottavio Faria e a Clara, de Betty Garcés, que abre a encenação entoando a canção de ninar Summertime para seus filhos pequenos, evocando imagens de uma vida sem preocupações que elas não encontrarão onde vivem.
Nesse contexto, o tijolo baiano surge mais de uma vez como símbolo de resistência e luta. São tijolos suspensos que o público vê durante a tempestade, sinal de perda e destruição. Mas são eles que reaparecem depois, nas mãos dos moradores, sendo repassados de mão em mão, prontos para a reconstrução, mesmo que a Terra Celestial almejada por todos ainda esteja distante. •
Mais um contrato interrompido
A prefeitura de São Paulo anunciou a troca da Organização Social responsável pela gestão da Fundação Theatro Municipal
por Ana Paula Sousa
Na mesma semana em que o Theatro Municipal de São Paulo estreava aquela que era, talvez, a sua produção mais aguardada do ano, a prefeitura da cidade anunciava a rescisão do contrato com a organização social Sustenidos, gestora da instituição. A decisão foi motivada pela postagem de um funcionário da Sustenidos sobre o assassinato de Charlie Kirk, ativista estadunidense que apoiava Donald Trump.
Em entrevista ao G1, o prefeito Ricardo Nunes declarou: “Já havia uma série de problemas com o Tribunal de Contas, mas a postagem de um colaborador incentivando a violência foi a gota d’água”. A Sustenidos, em nota oficial, afirmou ter afastado o funcionário e negou que as questões com o Tribunal de Contas sejam de fato relevantes.
As crises de gestão se tornaram uma marca da história recente da casa de ópera. Desde a implantação do atual modelo de administração, em 2011, nenhuma organização social escolhida, por chamamento público, para gerir a Fundação Theatro Municipal, conseguiu cumprir o contrato – previsto para durar 36 meses – até o fim.
Publicado na edição n° 1381 de CartaCapital, em 01 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Ópera entre tijolos’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.