Política

Entre o ódio e a pena: como o trumpismo instrumentaliza o autismo

Para o vice-presidente da Autistas Brasil, as declarações do presidente americano vão além do negacionismo científico e reforçam uma lógica política de viés eugenista

Entre o ódio e a pena: como o trumpismo instrumentaliza o autismo
Entre o ódio e a pena: como o trumpismo instrumentaliza o autismo
Donald Trump e o seu secretário de Saúde Robert F. Kennedy Jr. encampam uma nova empreitada negacionista que pode afetar a vacinação. Foto: SAUL LOEB / AFP
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O presidente Donald Trump voltou a suscitar uma nova polêmica, ao relacionar, sem base científica, o uso de Tylenol durante a gravidez e a vacinação infantil ao desenvolvimento do autismo. As declarações do republicano, proferidas ao lado de Robert F. Kennedy Jr., secretário de Saúde de seu governo e figura conhecida por posições antivacina, provocaram uma reação imediata das agências de saúde global, negando a suposta associação.

As alegações do líder norte-americano não ficaram circunscritas ao negacionismo científico ou a um lobby comercial. Para Arthur Ataide Ferreira Garcia, vice-presidente da organização Autistas Brasil e pesquisador da relação entre desinformação e autismo, o discurso se insere em uma lógica que reduz pessoas autistas à condição de problema social.

“Trump e Kennedy tentam reintroduzir a lógica eugenista que trata pessoas com deficiência como tragédia. A partir dessa lógica, o autismo se torna um vilão a ser combatido”, defende. Esse enfoque dialoga diretamente com o repertório do discurso de ódio que mobiliza o trumpismo contra outras minorias. “O autismo está sendo utilizado para a mesma finalidade, só que não exatamente a partir do ódio, mas a partir da pena.

Em entrevista a CartaCapital, Garcia detalha como esse tipo de desinformação serve a um projeto político baseado no pânico moral e como ele se conecta a interesses econômicos e a visões sociais ainda turvadas por estigmas.

Confira a seguir.

CartaCapital: O que é o autismo?

Arthur Garcia: Para começar, é importante esclarecer que o autismo não é uma doença, portanto, não se fala em cura. O transtorno do espectro autista é uma condição do neurodesenvolvimento, que afeta, sobretudo, a comunicação e interação social dos indivíduos que, por sua vez, podem demandar diferentes formas de reabilitação e estímulos, a depender de suas necessidades e capacidades.

CC: O que temos pactuado na literatura científica sobre o acompanhamento de pessoas autistas?

AG: Cada pessoa autista é única. Logo, as demandas das pessoas autistas são diferentes, de acordo com as deficiências, mas também habilidades e potencialidades. Há um consenso dentro da ciência que, quando uma criança autista precisa de reabilitação, ela precisa de atendimento terapêutico, como qualquer outra criança. Por exemplo, terapia funcional, fonoterapia, psicoterapia. Quando é necessário um cuidado mais direcionado à interação social ou desenvolvimento de relações, são comuns as práticas de caráter desenvolvimentista, como o modelo DIR/Floortime (Tempo de Chão), onde é comum se sentar ao nível da criança para expandir seus círculos de comunicação; em caso de dificuldades que se relacionam desde o núcleo familiar até a dimensão escolar, o método CERTS (que se concentra na construção de competências em comunicação social, regulação emocional e apoio de aprendizado) pode ser interessante.

O pânico moral das falsas causas retroalimenta o mercado das falsas curas, que vive da patologização da nossa existência

CC: Como você avalia as políticas públicas brasileiras prevendo a inclusão de pessoas autistas?

AG: Somos referência global em relação às políticas públicas para pessoas autistas e para pessoas com deficiência como um todo. A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, de 2008, é uma das mais eficientes em relação ao atendimento de pessoas autistas e de pessoas com deficiência dentro do contexto da escola regular, uma conquista de direitos importante em detrimento à concepção das escolas ‘especiais’, de natureza segregadora. No entanto, ainda precisamos avançar muito para superar visões estigmatizantes sobre o autismo, que ainda ressoam com muita força no País.

CC: De que interesses e visões estamos falando?

AG: Há um lobby muito forte de clínicas particulares que, a partir da lógica do lucro, defendem a imposição de regimes terapêuticos extensos em nome de uma suposta ‘normatização’ desses indivíduos. Uma falsa promessa às famílias de que, com isso, seus filhos vão se parecer menos autistas. Para esse nicho de mercado, altamente rentável, prevalece a intervenção terapêutica ininterrupta.

Mas, se você tira dessa criança essas oportunidades orgânicas de socialização, você a torna ainda mais dependente do cuidado em saúde, o que só retroalimenta esse mercado. O que a gente precisa são de intervenções terapêuticas centradas no desenvolvimento das potencialidades e das habilidades, e que não rotulem essas crianças como ‘barreiras ambulantes’ devido às suas dificuldades.

CC: Esse lobby também afeta os diagnósticos?

AG: Dois fenômenos coexistem no campo dos diagnósticos, um positivo e um negativo. O positivo é que, de fato, os movimentos sociais organizados por pessoas autistas vêm conquistando mais espaço e isso faz com que muitas pessoas, antes à margem, consigam um diagnóstico de autismo – mulheres, pessoas pretas, pardas e indígenas. Isso era impensável há 10 ou 15 anos atrás, devido ao forte preconceito associado à condição;, o autismo era visto como uma condição masculina e branca.

Mas, sim, também há um aumento de diagnósticos a partir dos interesses mercadológicos em torno do autismo. E isso é preocupante, porque o diagnóstico é uma ferramenta de emancipação, ele deve ser fornecido para que a pessoa autista obtenha uma inclusão plena na sociedade, seja na educação, saúde, mercado de trabalho, e na afirmação de seus direitos no tocante à acessibilidade e a políticas afirmativas.

CC: Quais interesses estariam por trás das declarações de Trump?

AG: Não estamos falando de uma narrativa de saúde ou ciência, e sim de uma narrativa eugenista. Para as bases trumpistas, que se articulam a partir do pânico moral e do ódio contra minorias, tratar pessoas autistas como um mal que precisa ser combatido é uma oportunidade enorme de articular essas massas. Trump usa o autismo como combustível para uma cruzada política, o que não é uma tática nova.

Recentemente, após o assassinato de Charlie Kirk, as lideranças trumpistas tentaram com todas as suas forças difundir a mentira de que o crime teria ligação com a comunidade trans. Agora, o autismo está sendo utilizado para a mesma finalidade, só que não exatamente a partir do ódio, mas a partir da pena. Kennedy, por exemplo, em falas anteriores, chegou a afirmar que pessoas autistas são uma tragédia para a sociedade, um peso para suas famílias, já que nunca alcançariam autonomia. Esse tipo de fala não só reduz pessoas autistas a um estereótipo cruel, como revela a essência de um projeto político eugenista que dita quem são os sujeitos menos dignos de viver, e que tem sido reverberado com mais força entre segmentos da extrema-direita.

CC: Mas de que forma exatamente a estratégia do pânico moral se conecta a essa lógica eugenista que você citou?

AG: Estamos falando de uma tática de tornar as famílias reféns do medo. Uma mulher que tenha ou não um filho autista, mas que tenha usado Tylenol na gestação – o único medicamento para dor que uma gestante pode tomar – se sentirá culpada. Aí na sequência, ele vende uma falsa solução milagrosa, de cura.

Qualquer nação que se preocupa mais em procurar causas miraculosas ou inventar curas para o autismo, ao invés de investir em políticas públicas de emancipação, educação inclusiva, cuidado humanizado, mostra que não deseja a nossa inclusão, mas nos corrigir, normalizar, encaixar a força em um modelo vigente. Essa narrativa é inerentemente eugenista, é a mesma que tratou pessoas com deficiência como tragédia na Alemanha nazista e justificou a introdução de políticas de extermínio.

CC: Você conduziu uma pesquisa sobre desinformação e autismo no Brasil. Estamos falando dos mesmos interesses escusos?

AG: Eu conduzi uma pesquisa coordenada pelo pesquisador Ergon Cugler, que constatou que o Brasil lidera os rankings da América Latina em relação à proliferação de desinformação sobre autismo. E isso, novamente, não se dá à toa. O pânico moral, com associação de falsas causas, permite, como consequência, a venda de falsas curas, o que retroalimenta um mercado que vive da patologização da nossa existência e que lucra, sobretudo, com o desespero de famílias que estão sendo ensinadas a odiar os seus filhos por serem diferentes. O autismo não é uma doença, é uma forma legítima de existir no mundo.

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