Daniel Camargos
Repórter especial na 'Repórter Brasil', venceu diversos prêmios por reportagens, entre eles o Vladimir Herzog. Dirigiu o documentário 'Relatos de um correspondente da guerra na Amazônia' e participou da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center.
Daniel Camargos
A lambança dos deputados petistas e a volta da esquerda às ruas
Ao se igualar à extrema-direita na votação da PEC da Blindagem, doze petistas contrariaram Lula e suas bases; a contradição ajudou a levar milhares às ruas


Enquanto Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan e Paulinho da Viola cantavam no domingo 21, em Copacabana, diante de uma multidão emocionada, fiquei pensando nos deputados petistas que votaram a favor da PEC da Blindagem. Como estariam assistindo àquilo, sabendo que tinham se posicionado do outro lado da história?
Ao ver os medalhões juntos, lembrei de um registro que sempre revisito: Chico, Caetano, Milton, Gal Costa e Mercedes Sosa cantando Volver a los 17, em 1987, no programa Chico & Caetano. Raros os momentos em que não me arrepio ao rever aquele vídeo. Mas desta vez não houve transmissão pela Globo nem pela GloboNews — canais que, em outros tempos, garantiram ampla cobertura a manifestações bolsonaristas. Só vi porque a Mídia Ninja transmitiu.
E talvez tenha sido especialmente difícil para os petistas que escolheram se alinhar a Nikolas Ferreira (PL-MG) e Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) em vez de Chico, Caetano e Gil.
Era esperado que o centrão e a extrema-direita votassem pela autoproteção parlamentar. Mas o que dizer dos deputados petistas Airton Faleiro (PA), Alfredinho (SP), Dilvanda Faro (PA), Dr. Francisco (PI), Flávio Nogueira (PI), Florentino Neto (PI), Jilmar Tatto (SP), Kiko Celeguim (SP), Leonardo Monteiro (MG), Merlong Solano (PI), Odair Cunha (MG) e Paulo Guedes (MG)?
Foram eles que, junto com a direita que dizem combater, garantiram a aprovação da PEC.
O projeto altera a Constituição para devolver ao Congresso o controle sobre investigações criminais contra deputados e senadores, hoje competência do STF. Também restringe prisões, transfere ao plenário do Supremo a aplicação de medidas cautelares e ainda amplia o foro privilegiado para presidentes de partidos. Foi aprovado por larga margem: 353 a 134 no primeiro turno, 344 a 133 no segundo. Dois petistas recuaram, mas o estrago já estava consumado.
No dia seguinte, a Câmara aprovou, por margem mínima, a volta do voto secreto para autorizar investigações. Oito petistas foram decisivos: Valmir Assunção (BA), Odair Cunha (MG), Paulo Guedes (MG), Dilvanda Faro (PA), João Daniel (SE), Alfredinho (SP), Jilmar Tatto (SP) e Kiko Celeguim (SP). Sem eles, não haveria sigilo.
A justificativa é que havia um acordo com o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB): apoio à PEC em troca de barrar a urgência da anistia. Mas o pacto ruiu em menos de 24 horas. A urgência foi aprovada, e Paulinho da Força (Solidariedade-SP) assumiu a relatoria, prometendo suavizar penas em vez de barrar a anistia.
Lula disse que teria votado contra e que, se fosse presidente do PT, teria fechado questão. A direção do partido chamou os votos de “erro grave”, mas não puniu ninguém.
A militância, contudo, não perdoou. Cartazes de “traidores” foram erguidos nos atos que tomaram o Brasil no domingo. Monitoramento da Quaest apontou que, entre 2,3 milhões de postagens, 83% foram críticas à PEC. A pressão foi tamanha que alguns recuaram publicamente — Merlong Solano, por exemplo, pediu desculpas e admitiu um “grave equívoco”. Outros preferiram o silêncio.
Como dizem na minha terra: “Quem come farelo se junta aos porcos”. Os petistas que votaram sim se misturaram às práticas da extrema-direita. Mas, ironicamente, acabaram catalisando os maiores protestos da esquerda nos últimos anos.
As manifestações tomaram 23 capitais e mais de 40 cidades. Em Copacabana e na Avenida Paulista, mais de 40 mil pessoas se reuniram. Uma bandeira gigante do Brasil foi estendida em resposta à bandeira dos EUA desfraldada semanas antes pelos bolsonaristas diante do MASP.
Os atos de domingo tiveram maior engajamento nas redes sociais do que as manifestações bolsonaristas de 7 de setembro, segundo levantamento publicado na Folha de S. Paulo. A cada 100 mil mensagens trocadas em grupos públicos de WhatsApp, 865 se referiam aos protestos da esquerda, contra 724 dos bolsonaristas. Mesmo sem lideranças petistas ou figuras do governo, a mobilização foi genuína, capaz de romper momentaneamente o domínio digital da extrema-direita.
Foi um domingo histórico, de retomada das ruas pela esquerda – que, mesmo tendo vencido as últimas eleições com Lula, estava acanhada diante do bolsonarismo.
Imagino que os eleitores que foram às ruas queiram agora que o governo Lula tenha coragem de levar adiante reformas estruturais, como acabar com a escala 6×1, taxar os super-ricos e realizar, de fato, uma reforma agrária.
E mais que isso: que não siga se acovardando diante dos interesses econômicos de empresas gigantes. Um bom exemplo seria Lula chamar seu ministro do Trabalho, Luiz Marinho, para explicar por que avocou a suspensão da inclusão da JBS Aves na Lista Suja do trabalho escravo, sob o argumento da “relevância econômica”.
A Lista Suja é um cadastro mantido pelo governo federal com o nome de empresas flagradas explorando trabalho análogo ao de escravo. Sua publicação é usada por bancos, exportadores e investidores para avaliar riscos sociais e reputacionais.
Foi a primeira vez, desde 2003, que um ministro interferiu no mecanismo. O caso vem do Rio Grande do Sul, em dezembro de 2024, quando dez trabalhadores foram resgatados da apanha de uma granja contratada da JBS. Jornadas de 16 horas, alojamentos sem água potável e dívidas ilegais foram relatados.
A responsabilização da JBS Aves foi confirmada em duas instâncias administrativas. Estava pronta para publicação no cadastro quando Marinho interveio. Auditores, procuradores e a Comissão Pastoral da Terra criticaram a decisão por quebrar a previsibilidade da Lista Suja, usada por bancos e exportadores para medir riscos.
A decisão de Marinho sinaliza que o porte econômico pode pesar mais que a prova técnica. O paralelo é evidente. No Congresso, deputados blindaram a si mesmos. No Executivo, o ministro blindou a maior empresa de carnes do mundo. O resultado é o mesmo: fragilizar mecanismos de responsabilização.
Se os votos petistas ajudaram, sem querer, a devolver a rua à esquerda, que a energia das ruas agora pressione também o Ministério do Trabalho.
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