Frente Ampla
Um inaceitável pacote da impunidade
É preciso mobilizar o povo para demonstrar que não daremos passos atrás para um passado sombrio de conchavos, impunidades e golpes


O Brasil é um país bipolar. Saímos de uma semana histórica, em que demonstramos a grandeza e a solidez de nossas instituições democráticas com o julgamento inédito que condenou à prisão um ex-presidente da República e altos comandantes militares por tentativa de golpe de Estado e outros crimes. Adentramos uma semana de vergonha e humilhação nacional com a aprovação da PEC da Blindagem e do regime de urgência no projeto que anistia os condenados por crimes contra a democracia.
É difícil conceber que poderes separados pela distância de uma rua possam passar mensagens tão diametralmente opostas ao nosso povo. De um lado, o poder “não eleito” reafirma seu compromisso com a democracia e seus pilares fundamentais, como a submissão de todos à lei, sejam humildes ou poderosos. Do outro, a representação da sociedade, a que deveria ser a “Casa do Povo”, atenta contra sua imagem e a própria razão de sua existência, que é o regime democrático.
Sob o pretexto de enaltecer as prerrogativas do parlamento, a Câmara dos Deputados aprovou um verdadeiro desatino, que é a exigência de autorização do plenário da respectiva casa legislativa, por maioria e em votação secreta, para a mera abertura de processos contra parlamentares.
Esse escudo corporativo, agravado pelo anonimato do voto secreto, já existiu em passado não tão distante e foi responsável por dar alívio processual à gente como Hildebrando Pascoal, o deputado da motosserra. Se estivesse em vigor atualmente, provavelmente teria criado embaraços à persecução penal de pessoas como Flordelis e Chiquinho Brazão. Todos os citados a título de exemplo cometeram crimes contra a vida.
A PEC aprovada ainda contém outros absurdos, como a extensão da prerrogativa de foro para presidentes de partidos. Em um país com nossa tradição política, muitos partidos são legendas de passagem, sujeitas às conveniências políticas mais diversas e pouco afeitas a ritos de democracia interna. Infelizmente, não irá demorar para partidos serem criados ou negociados para dar guarida a poderosos encrencados com a justiça.
Mas há fato tão grave na PEC da Blindagem que me recuso a crer que os deputados que votaram a favor chegaram a medir o risco: o Congresso Nacional pode virar um refúgio privilegiado para toda sorte de criminosos. Não faltariam meios de coerção e nem financeiros para que líderes do crime organizado passassem a se eleger para garantir foro privilegiado e, consequentemente, paralisarem seus processos penais, tudo nas coxias de negociações e votações secretas, sem o escrutínio da opinião pública.
A aprovação na Câmara, ainda bem, não encerrou a luta política sobre o tema. Os sinais emitidos são de que a proposta não terá caminho fácil no Senado, sendo que o presidente da Comissão de Constituição e Justiça chegou mesmo a afirmar que sequer pautará o tema. Que assim seja!
Já a aprovação da urgência no projeto de anistia veio no mesmo pacote inaceitável de acordo, feito entre o Centrão e o bolsonarismo, para a aprovação da PEC da Blindagem e anistia ou redução de penas aos golpistas.
O sonho de consumo da extrema-direita é que o texto aprovado seja uma indecência: anistiar crimes desde outubro de 2022 até os que venham a ocorrer. A cereja do bolo seria a volta da elegibilidade de Jair Bolsonaro. Sem contar o escárnio máximo, que é manter o mandato de Eduardo Bolsonaro, o Silvério dos Reis do século XXI, para que este seja pago pelos brasileiros para seguir cometendo crimes de lesa-pátria no estrangeiro.
Foi uma noite de vergonha para a Câmara, que, em uma única votação, desonrou o legado de Ulysses Guimarães, rasgou a Constituição Cidadã de 1988 e vilipendiou o cadáver de Rubens Paiva, ex-deputado assassinado pela ditadura, e de tantos mortos e desaparecidos políticos do país.
É uma aberração de inconstitucionalidade, fere cláusula pétrea, porque a anistia é incabível para crimes contra a democracia. Do contrário, seria como se a Constituição Federal contivesse um dispositivo de autodestruição.
Mas também é um forte ataque contra o Supremo Tribunal Federal, o Estado Democrático de Direito e, em última análise, até o próprio Legislativo, já que os condenados tentaram nada menos do que um golpe de Estado. Na história brasileira, sabemos, golpe dado, Congresso fechado.
O que se diz é que o relatório que será construído focará na redução das penas para os crimes de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito, o que beneficiaria os condenados, já que a lei penal retroage quando para melhorar a situação do réu ou apenado. Nessa possibilidade, não haveria anistia ampla, geral e irrestrita, permanecendo as condenações, especialmente a Bolsonaro e o núcleo de conspiradores, mas talvez com penas menores.
Aqui também haverá um flanco de muita luta política, porque não admitiremos anistia para golpistas e defenderemos a democracia até as últimas consequências, no Congresso e nas ruas. É preciso mobilizar o povo para demonstrar de forma cabal que não daremos passos atrás para um passado sombrio de conchavos, impunidades e golpes.
Temos de ampliar a pressão popular pela aprovação da agenda que de fato interessa ao País: isenção do imposto de renda até 5 mil reais, taxação dos bancos, bilionários e bets, fim da escala 6 X 1 e redução dos juros. Essa é a agenda do Brasil real e não esse combo legislativo nefasto e contrário aos interesses da nação.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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