Política
Dos tucanos ao ornitorrinco
A qualidade do anti-Lula piora a cada eleição


A eleição de Lula em 2002 abalou as convicções dallagnolescas da turma da bufunfa. Até aquele outubro, e desde o fim da ditadura, os candidatos da elite haviam conseguido exorcizar o fantasma do “trabalhismo”. Primeiro, arquitetaram o caçador de marajás, Fernando Collor, mais tarde cassado por corrupção, e na sequência, por duas eleições, carregaram nos ombros o príncipe dos sociólogos, Fernando Henrique Cardoso. Quando o metalúrgico, enfim, triunfou, após três derrotas consecutivas, os donos do dinheiro se apegaram ao ditado “há males que vêm para o bem”. Estavam convencidos do irremediável e retumbante fracasso do “sapo barbudo” no primeiro mandato, de modo a enterrar não só o lulismo, mas também o petismo, o varguismo, o desenvolvimentismo e todos os demais ismos que encarnam a vontade popular. O Brasil voltaria aos eixos, às mãos de seus capitães hereditários, escolhidos pela graça divina. O lema do brasão paulista, o âmago desse pensamento, ecoaria do Oiapoque ao Chuí. Non ducor, duco. Conduzo, não sou conduzido.
Lá se vão 23 anos. A despeito do Mensalão e da Lava Jato, Lula faturou três eleições e em duas emplacou a pupila Dilma Rousseff. Voltou ao poder em 2022, mas poderia ter retornado quatro anos antes, não fosse a infame condenação que o tirou da corrida presidencial arquitetada na República de Curitiba por um juiz parcial e um Ministério Público a serviço de interesses estrangeiros.
Nestas duas décadas, o anti-lulismo, a cada fracasso, sobreviveu do ódio e do wishful thinking. Emburreceu. Quem tem por dever e interesse o hábito de acompanhar o debate político no País é frequentemente submetido a um filme repetido e modorrento. Um ano antes das eleições, o adversário da vez do PT está virtualmente eleito nas páginas de jornais e revistas, nos sites, nos programas de rádio e tevê e, mais recentemente, nos grupos de WhatsApp. Seja quem for, venha de onde vier, é imbatível, sagaz, carismático, excelente gestor, “moderado”, moderno – em contraste com um Lula envelhecido, ultrapassado e “extremista”. No caldo das esperanças e desejos misturam-se os ingênuos e os espertalhões, pois todos os dias saem de casa um malandro e um otário. E quando os dois se encontram, surge um negócio.
Assim o dicionário define o autoengano: um processo psicológico, muitas vezes inconsciente, onde um indivíduo mente para si mesmo, aceitando informações falsas ou distorcendo a realidade para evitar verdades dolorosas. E a verdade dolorosa para muitos é que Lula continua favorito a se manter na principal cadeira do Palácio do Planalto até 2030, apesar da idade e das dificuldades do atual mandato. Se o favoritismo se confirmar nas urnas eletrônicas do próximo ano, convém ao presidente reservar ao menos um parágrafo do discurso de vitória para agradecer ao camarada Trump.
Outra verdade dolorosa: a qualidade do anti-Lula piora a cada eleição. Os adversários já foram José Serra, Geraldo Alckmin e, vá lá, Aécio Neves (no caso de Dilma). Bem ou mal, eram de outra estirpe. Em 2022, foi a vez de Bolsonaro, que conseguiu o feito mitológico de se tornar o primeiro presidente no exercício do cargo a não ser reeleito (e o primeiro golpista condenado da história nacional). Os sabichões da Faria Lima agora apostam suas fichas – e algumas moedas – no governador paulista Tarcísio de Freitas, um oxímoro ambulante, o bolsonarista “moderado”. Trocaram os tucanos por um ornitorrinco.
Publicado na edição n° 1380 de CartaCapital, em 24 de setembro de 2025.
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