

Opinião
Epidemia psíquica
Temos de cuidar da mente, vigiar para não sermos dragados pela loucura coletiva. Como dizia Mino Carta, “nem fé nem medo”


Não será a fome, nem terremotos, nem micróbios, nem câncer, mas o próprio homem é que será o maior perigo do homem, pela simples razão de que não existe proteção contra epidemias psíquicas, que são infinitamente mais devastadoras do que a pior catástrofe natural.”
Caro leitor, você, como eu, sente que estas palavras podem descrever para onde caminhamos, de novo, como humanidade? Esta frase é uma adaptação de vários textos do eminente Carl Jung (1875–1961), que escreveu estas considerações no período da Segunda Guerra Mundial.
Pensador e psicoterapeuta, contemporâneo de Freud, Jung fundou a psicologia analítica, também chamada de Psicoterapia Junguiana.
Ele estudou e detalhou, em suas obras, a relação entre a alma e a matéria do ser humano, os mecanismos de adaptação na sociedade e a afirmação e a negação das características da personalidade no processo de socialização e pertencimento social.
Criou ainda o conceito de Inconsciente Coletivo, uma espécie de herança psicológica comparada à herança genética e que permeia a nossa existência e evolução.
Jung dava grande importância à intuição, que descrevia como uma função psíquica irracional capaz de perceber sutilezas que a mente consciente não percebe, acessando o inconsciente coletivo e revelando informações e oportunidades de aprendizado e crescimento futuros.
O que Jung pensaria da psicoterapia através da Inteligência Artificial? Traumas, segredos e angústias sendo revelados online à Big Data, tornando o paciente uma presa fácil de algoritmos e estratégias de marketing.
Esta semana, num almoço rápido num dia de trabalho com amigas queridas, tive um desses presentes que a conversa atenta com outro ser humano pode nos dar.
Comentando sobre essa frase de Jung que me fez refletir sobre a vida atual, minha amiga (obrigada Luiza!) me falou, numa analogia com os tempos atuais, sobre um fato curioso ocorrido na Idade Media, a “Epidemia da Dança”. O fato ocorreu, em 1518, em Estrasburgo, na França.
Era um período de fome e doença na Europa medieval, uma mulher foi até a praça central do vilarejo em que vivia e começou a dançar sem música, e sem parar. Ficou assim por dias. Às vezes, caía de cansaço. Às vezes, seus pés sangravam, mas ela voltava a dançar. E então outras pessoas foram chegando e entrando nesse transe.
Depois de alguns dias, mais de 400 pessoas dançavam ininterruptamente. Muitas morreram de exaustão ou de ataque cardíaco.
O fenômeno estendeu-se por meses e, sem explicação lógica, repetiu-se em algumas outras cidades. E, assim como começou, terminou.
A explicação dada para esse acontecimento foi a de que a catarse coletiva foi um efeito secundário do sofrimento extremo imposto pelas condições miseráveis de vida da época. Ou seja, teria se tratado de uma epidemia psíquica. Hoje, isso, com certeza, seria difundido pelo TikTok e poderia matar muito mais gente.
Nosso mundo vive uma nova epidemia psíquica, flertando com o retrocesso de pensamentos terríveis difundidos durante a mesma catástrofe da Segunda Guerra Mundial que motivou a reflexão de Jung. Temos de cuidar da mente, vigiar para não sermos dragados pela loucura coletiva.
Parar, respirar, observar, manter os pensamentos claros. Perceber a brevíssima, mas maravilhosa florada dos ipês. Ouvir o cantar dos sabiás nas madrugadas deste setembro. Influencers raivosos e inescrupulosos não podem ser os nossos mentores.
Como dizia nosso querido Mino Carta, “nem fé nem medo”. Vamos fazer o nosso melhor. •
Publicado na edição n° 1380 de CartaCapital, em 24 de setembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Epidemia psíquica’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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