Economia
Desliguem o vento
O Brasil tem desperdiçado a eletricidade produzida pelas usinas eólicas e solares, enquanto usa fontes poluentes


Onde o vento sopra com força, as turbinas giram em sincronia. Sob o sol do meio-dia, painéis refletem a luz intensa. É a imagem de um país que se orgulha de ter uma das matrizes elétricas mais limpas do mundo. Parte considerável dessa energia não tem, no entanto, chegado ao consumidor. Ela é simplesmente desligada, como se fosse descartável. O fenômeno, conhecido em inglês como curtailment, expõe a contradição: o Brasil é abundante em recursos renováveis, mas ainda recorre a usinas térmicas, caras e poluentes, para atender à demanda.
Curtailment significa cortes na geração de energia elétrica quando a rede não consegue absorver toda a produção. Isso acontece por falta de capacidade de transmissão ou excesso de oferta em determinados horários. Na prática, usinas solares e eólicas são desligadas, apesar de aptas a gerar. O problema não é exclusivo do Brasil. Em 2023, a Califórnia reduziu em 500 gigawatts-hora a energia solar, o suficiente para abastecer 40 mil casas por um ano. Aqui, o desperdício alcançou, porém, outra escala. Entre 2021 e julho de 2025, o País deixou de aproveitar cerca de 30 TWh de energia renovável, equivalente ao consumo anual de estados como Pernambuco ou Ceará, ou ainda suficiente para suprir 14,7 milhões de residências durante um mês. Somente nos sete primeiros meses deste ano, os cortes somaram 14,5 TWh, mais que todo o consumo anual do Distrito Federal.
Para Elbia Gannoum, presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica, o impacto vai além da conta de luz. “O gerador não tem responsabilidade pela operação do sistema. Ele está disponível para gerar, mas o operador manda desligar e ele não é ressarcido. Isso gera incerteza e ameaça a credibilidade do sistema.” A média de corte chega a 30% e, em alguns parques, o índice passa de 60% ou até 80%. O setor acumula mais de 5 bilhões de reais em prejuízos. Segundo a executiva, paira uma ameaça sobre a imagem de estabilidade regulatória do Brasil construída ao longo de décadas. “Quem investe em energia e infraestrutura são as grandes transnacionais. Quando existe essa instabilidade, podem deixar de investir aqui.”
Em poucos meses, o País estará em Belém para a COP30, pedindo mais capital para acelerar a transição energética. E aí vem o paradoxo: o Brasil tem abundância de vento e sol, mas joga fora parte dessa energia e mantém térmicas acionadas ao entardecer. A conta chega ao consumidor na forma de bandeiras tarifárias, ao mesmo tempo que subsídios distorcidos à geração distribuída ampliam o desequilíbrio. Criados para apoiar famílias de baixa renda, os incentivos passaram a ser explorados como modelos de negócio por empresas que instalam painéis em larga escala e repassam energia a consumidores com maior poder aquisitivo.
O crescimento da geração distribuída, que hoje ultrapassa 40 gigas instalados, o equivalente a três Itaipus, foi impulsionado por incentivos desde 2012. Para o ex-presidente da Petrobras e senador Jean Paul Prates, o debate atual tem sido conduzido de forma equivocada, transformado em trincheira ideológica. Os custos, afirma, caíram mais de 80% em uma década. Manter subsídios irrestritos significa apenas garantir margens de lucro elevadas. O caminho, defende, está em ajustes graduais, tarifas modernas que reflitam a curva real de demanda, integração com armazenamento e soluções digitais, além de mecanismos que assegurem acesso aos mais vulneráveis.
Há problemas de transmissão, planejamento e preços
O professor Nivalde de Castro, da UFRJ e coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico, afirma que o problema ganhou força porque a expansão das usinas solares e eólicas é muito mais rápida do que a construção de linhas de transmissão. “O operador precisa cortar para evitar sobrecarga e risco de apagão.” Ele lembra o blecaute de agosto de 2023, quando falhas nas informações técnicas de usinas renováveis levaram a um colapso momentâneo. Desde então, o Operador Nacional do Sistema passou a adotar critérios mais rigorosos, aumentando os cortes.
O excesso de oferta em horários de baixa demanda é outro fator. Nos fins de semana, durante o dia, a produção solar supera o consumo. Parte das usinas eólicas é então desligada. À noite, quando a demanda aumenta, entram as hidrelétricas e, em seguida, as térmicas. O professor Erik Rego, da Escola Politécnica da USP, diz que apenas construir mais linhões não resolve. É preciso mexer no preço. “Se você conseguir deslocar parte da demanda para o meio do dia, quando há sobra de energia solar, o problema diminui. Mas para isso é necessário mudar a forma de cobrar a tarifa.”
Hoje, residências e comércios pagam o mesmo preço ao longo do ano, o que não estimula o uso em horários de excedente. Ele propõe tarifas horárias e o uso de medidores inteligentes, capazes de incentivar banhos mais cedo, o acionamento de máquinas durante o dia e até programas de resposta da demanda organizados pela Aneel.
O caminho estrutural envolve reforçar as linhas de transmissão, sobretudo do Nordeste para o Sudeste, e investir em armazenamento. O governo prepara para o próximo ano o primeiro leilão de baterias, tecnologia usada em vários países. Há ainda projetos de usinas reversíveis, que bombeiam água para reservatórios durante o dia e geram energia à noite. Outra frente promissora é o uso de Inteligência Artificial na operação do sistema. Para André Sih, fundador da consultoria Fu2re, algoritmos de machine learning podem prever com mais precisão a produção de energia e a variação da demanda. “A IA permite planejar de forma mais eficiente, ativando redes inteligentes para equilibrar oferta e consumo.” A tecnologia também contribui para a manutenção preventiva de equipamentos, reduzindo falhas e interrupções. Os ganhos incluem maior confiabilidade, redução de custos operacionais, melhor gestão de ativos e um sistema mais resiliente diante de eventos extremos.
O Brasil chega à COP30 como vitrine da transição energética, mas também expõe rachaduras de um sistema que precisa de ajustes urgentes. O futuro da soberania energética brasileira dependerá da nossa capacidade de transformar esse desperdício em oportunidade. Vento e sol não faltam, falta permitir que essa energia chegue ao destino. •
Publicado na edição n° 1380 de CartaCapital, em 24 de setembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Desliguem o vento’
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