

Opinião
Armadilha identitária
Os movimentos de luta por emancipação devem tomar cuidado com a ênfase excessiva no “pertencimento” e a tentação sectária


Do ponto de vista da psicanálise, o “identitarismo” seria uma ficção. Nós, humanos, somos divididos por natureza. Há uma parte de nós que desconhecemos, o inconsciente, além de carregarmos fantasias e desejos confusos. Não somos idênticos a nós mesmos, o que nos torna suscetíveis a conflitos internos. Os primeiros versos de uma antiga cantiga do poeta português Francisco de Sá de Miranda (1481–1558) resumem bem essa condição contraditória e conflituosa: Comigo me desavim / Sou posto em todo perigo / Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim.
Nem por isso devemos menosprezar os movimentos de luta por emancipação que ganharam proeminência no século XXI, hoje indiscriminadamente rotulados como “identitários”. Imagino que sua função seja defender os direitos de grupos historicamente marginalizados, que compartilham características comuns, como raça, gênero, orientação sexual e classe social. Na luta contra a opressão, esses movimentos cumprem um papel crucial ao formar alianças solidárias e valorizar experiências coletivas. Porém – como dizia o escritor e dramaturgo Plínio Marcos, “sempre tem um porém” –, a sociedade não é um simples painel de grupos isolados. A recusa de alguns indivíduos ou coletivos em se identificar e dialogar com outros, provenientes de experiências diferentes, fragiliza o laço social.
Com certo espanto, já presenciei cenas em que indivíduos rejeitaram a abordagem de desconhecidos na rua, mesmo sem saber a intenção: “Não te autorizei a falar comigo”. Talvez não percebam que o próprio pedido de autorização já é uma primeira abordagem. Por qual caminho, então, um anônimo poderia acessar o outro? E se a abordagem não autorizada fosse apenas para um prosaico pedido de ajuda para encontrar um endereço?
Nem todos os ditos “identitários” podem ser acusados de sectarismo. O Movimento Negro Unificado (MNU), criado no fim dos anos 1970, já no ocaso da ditadura, é um exemplo disso. Participei de diversas passeatas e mobilizações promovidas pelo MNU e, mesmo sendo uma mulher branca, jamais fui recebida com olhares de “você não é daqui”. Seria compreensível alguma desconfiança. Vivemos num país marcado por três séculos e meio de escravidão, com desigualdades raciais abissais que persistem até hoje, além do preconceito e da violência enfrentados cotidianamente pela população negra. Mas não foi o caso. Minha presença nos atos não causou espanto. Ao contrário, parecia bem-vinda.
Tal abertura ao outro – que reconhece a diferença sem fazer dela um muro – também está presente na belíssima canção Touche Pas à Mon Pote (Não Mexa Com Meu Amigo), composta por Gilberto Gil em 1985 e inspirada no slogan de um movimento antirracista francês, o SOS Racisme. Os versos iniciais da música, que se tornou um hino à diversidade, apelam para que todos se engajem na luta contra o preconceito: Não toque em meu amigo / O que significa isso? / Isto quer dizer, talvez / Que o Ser que habita nele / É o mesmo que habita em você. Mais adiante, Gil aproxima o filósofo Jean-Paul Sartre, filho de um oficial da Marinha francesa, e o tenista Yannick Noah, filho de um jogador de futebol camaronês, como expressões distintas de uma mesma essência. Mesmo com origens diferentes e talentos tão singulares, são apresentados como frutos do mesmo Être, o mesmo Ser.
Como é bom saber que indivíduos diferentes de nós podem tornar-se nossos cúmplices na luta por um mundo mais justo, ajudando a suavizar o fardo da existência em meio a tantas opressões. É isso que corremos o risco de perder quando movimentos de luta por emancipação se fecham em “nichos narcísicos”, onde a exaltação do pertencimento a um grupo específico se sobrepõe ao diálogo com a sociedade. Tal fechamento parte de uma crença ilusória: a de que nossa identidade é algo fixo, estável e coerente.
Ainda no século XIX, o poeta francês Arthur Rimbaud (1854–1891) apresentou, em uma célebre carta ao colega Paul Demeny, a enigmática expressão: “Eu é um outro” (Je est un autre). A afirmação, que soa paradoxal e até “errada” do ponto de vista gramatical, antecipa uma ideia que mais tarde ganharia força na psicanálise: a de que o “eu” não é uno nem transparente a si mesmo. Está sujeito a impulsos e desejos que não domina completamente. Arrisco aqui uma provocação: talvez o sujeito que se vê como “idêntico a si mesmo” esteja mais próximo da estrutura psicótica do que aquele que reconhece – e lida com – a divisão subjetiva que nos constitui. •
Publicado na edição n° 1380 de CartaCapital, em 24 de setembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Armadilha identitária’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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