Paulo Nogueira Batista Jr.

paulonogueira@cartacapital.com.br

Economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor-executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países

Opinião

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Coração, confiança, fé

Cabe-lhes suspender a descrença que a razão permanentemente suscita, a sua tendência a invadir todos os aspectos da vida

Coração, confiança, fé
Coração, confiança, fé
Pessoa: sem a loucura, o homem é apenas a besta sadia, cadáver adiado que procria – Imagem: Acervo Casa Fernando Pessoa
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Há cerca de 30 anos, comecei escrevendo com certa periodicidade na imprensa nacional, primeiro na Folha de S.Paulo, depois no Globo e, mais recentemente, aqui na CartaCapital. Pois bem, mesmo um colunista veterano como eu enfrenta, às vezes, o terrível problema da falta de assunto. Desencorajado, ele se debate com esse vazio e procura, em vão, um caminho para escrever.

É possível fazer muitas coisas sem o coração, eu sei. Mas escrever não está entre elas. Uma solução é transformar a falta de assunto no assunto mesmo da crônica. E é exatamente o que estou fazendo agora.

Nessa base precária, venci os primeiros parágrafos. Como prosseguir? Uma possibilidade seria voltar a falar da minha obra mais recente, Estilhaços. Quero que ela circule o mais possível, até porque foi escrita com o coração, com sinceridade e entusiasmo. Isso está longe de ser, claro, garantia de qualidade. Ao contrário, pode ser o caminho para a mais atroz subliteratura.

Sou suspeito, mas não creio que seja o caso. Não se trata, afinal, de um livro improvisado. Foi escrito ao longo de vários anos com esforço, obstinação e predeterminação, pelos caminhos tortuosos do coração.

Não por acaso, o coração constitui um tema central do livro. O coração, como sede e metáfora de tudo que há de afetivo, impulsivo, impetuoso em nós, domina o livro do começo ao fim. Aparece em todas as suas partes de formas variadas – nos aforismos, nas crônicas, nos contos – sempre valorizado como elemento indispensável da vontade de viver.

A razão não deixa sobreviventes, escrevi em certo momento. Submetida ao crivo implacável da razão, que tudo questiona, solapa e resseca, a frágil vontade de viver corre um perigo fatal. E é justamente no coração que ela pode encontrar apoio e refúgio.

Repare, leitor ou leitora, que o coração não se opõe à razão, não quer nem teria condições de substituí-la. O que ele pode e deve pretender é barrar o absolutismo da razão, isto é, a sua tendência a invadir todos os aspectos e recantos da vida. Ou, em outras palavras, o que cabe ao coração é suspender a descrença que a razão permanentemente suscita.

A lucidez de não ter lucidez alguma, escrevi em outro momento.  A vontade de viver precisa de diferentes camadas de proteção. Um indivíduo permanentemente lúcido pode ser comparado a alguém que não consegue dormir. Não dorme, não sonha, não se renova. E caminha assim para uma vida insípida e uma morte prematura.

Sem a loucura, indagou Fernando Pessoa, “o que é o homem mais que a besta sadia, cadáver adiado que procria?” A loucura é que dá um sentido à vida, enchendo-a de propósitos e significados misteriosos. Propósitos e significados que, à luz da razão, dificilmente se sustentam.

Pode-se usar a razão, impulsionada pelo coração, contra a própria razão? Sim, dentro de certos limites. Veja-se a questão da fé na existência de Deus. O que resulta da aplicação da razão a essa questão fundamental? Aporias, nada mais, nada menos. Diante dessa incerteza radical, Pascal dizia: “Deus é sensível ao coração, não à razão”. Mas esse recurso ao coração apazigua realmente? O coração por acaso oferece a certeza que a razão solapa?

Vamos nos deter um pouco diante do papel da fé. Não são apenas as questões metafísicas que dependem da existência ou não de fé. Tudo que nos cerca não exige alguma forma de fé, a sua presença como elemento de sustentação? O amor, por exemplo. É possível amar e ser amado sem segurança, sem confiança, sem fé? Não é corrosiva, talvez fatal a dúvida que se instala numa relação amorosa?

Precisamos da fé, assim na terra como no céu.  •

Publicado na edição n° 1380 de CartaCapital, em 24 de setembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Coração, confiança, fé’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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