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Uma carta para Mino
Sua presença se revelou não apenas como inspiração, mas como desafio constante ao nosso pensamento crítico
Caro Mino,
Você não conheceu de perto aqueles que agora escrevem esta carta, porém deixou filhos. Não filhos biológicos, mas frutos de um longo trabalho em busca de democracia, espírito crítico e coragem para enfrentar os poderosos. Cada palavra publicada, cada gesto de resistência, deixou sementes que continuam a florescer mesmo em tempos adversos. As sementes que você deixou inspiram reflexão sobre o papel do jornalismo e da cidadania. Uma máxima de Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego, nos parece particularmente apropriada para pensar esse legado: “uns governam o mundo, outros são o mundo”. Ela ilumina a experiência inicial da Rede BrCidades e nossa busca por parceiros na mídia dispostos a sustentar um debate crítico sobre o futuro das cidades brasileiras.
Impulsionados pelo exemplo da professora Erminia Maricato e suas histórias sobre as experiências pioneiras do Ministério da Cidade, em uma época em que brasileiros ousaram “se lambuzar de democracia” — expressão que ela mesma costuma usar —, quando foram criados conselhos, audiências, congressos e tantos outros encontros para debater coletivamente um horizonte alcançável para nossas cidades, nasceu também o desejo de um espaço em que o debate saudável pudesse criar raízes e florescer.
Estávamos em 2019, e isso não era tarefa fácil. Vivíamos o auge do delírio coletivo lavajatista e o início do governo bolsonarista (se é que aquilo pode ser chamado de governo). Onde quer que se olhasse surgiam fascismos, violência e misoginia. Contudo, em meio ao mar pútrido da mídia hegemônica nacional, havia uma morada para o bom senso, pensamento crítico, razoabilidade e discernimento: a revista que você criou, CartaCapital. Quando buscamos a revista para propor a parceria, havia um espírito de ousadia que apenas os incautos podem exibir. Falamos com Sérgio Lírio e, para nossa alegria, a proposta foi aceita.
Manter uma coluna não é e nunca foi tarefa tranquila. Escrever é um exercício árduo, que muitas vezes exige deixar o ego de lado para escrever, reescrever, retrabalhar e reimaginar aquilo que se quer dizer. Mesmo assim, na maioria dos casos, o resultado final ainda fica aquém do que se desejava expressar. “O perfeito não se manifesta”, nos lembra, mais uma vez, Fernando Pessoa.
Nesse aprendizado diário, sua presença se revelou não apenas como inspiração, mas como desafio constante ao nosso pensamento crítico. Por isso, esta carta que escrevemos para você: estamos diante de uma personalidade complexa, capaz de desafiar o talento dramatúrgico de Shakespeare e Nelson Rodrigues — este último, um colega de profissão tão contestado quanto você, mas igualmente reconhecido por criar personagens que ilustram a exuberante mediocridade tupiniquim.
Sobre sua capacidade de criar e conduzir projetos jornalísticos com paixão e rigor, História, lenda e verdade factual serão testemunhas, de defesa, acusação ou ambos. Ao lado de Cláudio Abramo, Jânio de Freitas, Alberto Dines, Fernando Morais, Nirlando Beirão, dentre outros e outras (a lista, felizmente, é grande na “armata brancaleone”), você pensava e vivia o dia inteiro o projeto jornalístico (seja jornal, revista, programa de televisão e até, por breve período, um blog na internet).
Também é bom lembrar de outro aspecto dessa sua personalidade que era reiterada em entrevistas, palestras e debates de que participou, direta ou indiretamente, através de seus textos ou intervenções públicas, não sem deixar de apelar à velha companheira e ferramenta de trabalho do jornalista, a quem recorria “o mais possível”, a ironia: a face acadêmica, do “professor” Mino Carta. A “aula” ou “lição”, dadas a simplicidade e a objetividade dos temas abordados, condições implícitas na apresentação do conteúdo da “matéria”, se resume à apresentação do que o “professor” defendia como três princípios basilares do jornalismo, que qualificava como “intransferíveis, inabaláveis”, apresentados em diversas circunstâncias, articulados e interdependentes: fidelidade (canina) à verdade factual, exercício do espírito crítico (desabrido, constante) e fiscalização do poder (onde quer que ele se manifeste).
Você sempre apresentava esses princípios de maneira didática e pedagógica e alinhava o pensamento que os fundamenta argumentando que o “jornalismo é uma função pública”. Esse fundamento político dos três princípios aproxima o “professor” e sua “aula” da formulação de conceitos, categorias e definições que a filosofia e a ciência política (de Aristóteles e Platão a Kant, de Tocqueville a Raymundo Faoro, passando por Hannah Arendt) construíram para temas como “verdade”, “crítica”, “política”, “poder” etc.
Assim, articulados e interdependentes, a verdade factual, o espírito crítico e a fiscalização do poder embasam a prática jornalística cotidiana, do repórter ao editor, do fotógrafo ao diretor de redação, enfim, do conjunto dos profissionais do jornalismo fazendo de cada um agente político que se posta diante dos fatos, da realidade como ela é (e por que é), deixando claro o que pensa a respeito deles, Suas Excelências: os fatos. São esses os norteadores que nos inspiram e que sempre buscamos alcançar em nossos artigos publicados no site de CartaCapital.
Deixemos a discussão de questões deontológicas, éticas, filosóficas (sobre veracidade, verdade, opinião, objetividade etc.) para outro momento. O que você sempre nos mostrou em suas “aulas” foi algo muito mais direto e essencial e deve ser reconhecido pelos contemporâneos e futuros cidadãos e cidadãs desta frágil democracia brasileira como um antídoto à desinformação, à predominância de “narrativas”, manipulação e distorção da realidade como ela é, da “opinião” sem fundamento e informação (já que, como disse Hannah Arendt, “fatos informam as opiniões”).
Seguindo à risca sua lição – e aplicando os três princípios – é possível melhorar o “jornalismo ruim” que se pratica neste “lindo país”, pois formaremos leitores, espectadores, ouvintes críticos, conscientes de seu papel político, certamente capazes de escolhas políticas fundamentadas além de, finalmente, ser capazes de saborear textos e outros produtos jornalísticos inteligentes, salpicados de ousadia e do seu ingrediente preferido, a ironia. Porque “é bom, quando possível, dar risada”.
Ironicamente, você nos deixou em um momento em que as tecnologias parecem dominar o jornalismo. Sabemos que não era fã delas. Desde muito antes de existirem tablets e celulares, você já parecia antecipar um mundo em que “os computadores engoliriam as pessoas”. Por isso, como forma de prestar uma singela homenagem, enviamos simbolicamente esta carta à moda antiga: escrita a várias mãos. É nosso jeito de agradecer por você ter criado um meio de comunicação amplo, aberto e democrático, onde hoje ocupamos um espaço importante. Aqui debatemos um projeto de Brasil que vai muito além das discussões vazias e personalistas dos grandes jornais e das redes sociais.
Como filhos das ideias que você plantou, esta carta se encerra com uma promessa: honraremos seu legado, buscando justiça social, democracia verdadeira e um jornalismo que continue sendo, como você dizia, função pública.
Com estima e gratidão,
Rede BrCidades
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