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Salsicha x brócolis: a batalha desigual da alimentação infantil

A obesidade entre crianças já supera a desnutrição no mundo, empurrada pelos ultraprocessados

Salsicha x brócolis: a batalha desigual da alimentação infantil
Salsicha x brócolis: a batalha desigual da alimentação infantil
Por mais que campanhas falem dos malefícios do consumo de ultraprocessados, a possibilidade de comprar um produto 'que todos comem' é visto como uma ascensão social para a população mais pobre. (Imagem gerada via inteligência artificial)
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O Relatório de Nutrição Infantil de 2025, da UNICEF, publicado no início de setembro, mostra que uma em cada cinco crianças e adolescentes entre 5 e 19 anos vive com excesso de peso. E mais: uma em cada vinte crianças menores de 5 anos já enfrenta o mesmo problema. Pela primeira vez na história, a obesidade infantil superou a desnutrição. A inversão da balança é um motor para o lucro futuro e um custo para a sociedade.

Esses números expõem uma transformação silenciosa: enquanto a desnutrição cai, o sobrepeso e a obesidade crescem em ritmo acelerado, inclusive em países de baixa e média renda. Nesses, a obesidade infantil mais do que dobrou desde 2000. Hoje, 81% da carga global de excesso de peso em crianças e adolescentes está nesses países — um salto em relação aos 66% de duas décadas atrás. Um dos fatores é a disponibilização de produtos cada vez mais açucarados, ultraprocessados e com excesso de gorduras.

O contato com esses alimentos começa cedo. Em mais da metade dos países de baixa e média renda avaliados, mais de 50% das crianças de 6 a 23 meses consumiram doces ou bebidas açucaradas no dia anterior à coleta dos dados. Entre adolescentes, o cenário é ainda pior: 60% relataram ter consumido mais de um alimento ou bebida açucarada no mesmo período; 32% tomaram refrigerantes e 25% ingeriram alimentos processados salgados. Hoje, os ultraprocessados já representam um terço da ingestão calórica de adolescentes em países como Argentina, Chile e México, e chegam a responder por metade das calorias consumidas por jovens na Austrália, Estados Unidos e Reino Unido.

Os efeitos não se limitam ao ganho de peso. Crianças com dietas pobres em nutrientes e ricas em açúcar, sal e gordura correm maior risco de desenvolver pressão alta, glicemia elevada e alterações de colesterol já na infância. Esses problemas tendem a persistir na vida adulta, aumentando a chance de doenças crônicas como diabetes tipo 2, cardiovasculares e alguns tipos de câncer. É aí que entra o motor do lucro: o consumo excessivo de ultraprocessados cria hábitos difíceis de reverter, que se consolidam em uma cultura alimentar. O terreno perfeito para a indústria farmacêutica vender seus medicamentos milagrosos. As canetas emagrecedoras, fenômeno global, nasceram dessa oportunidade de mercado.

Os efeitos também são psicológicos e sociais. O sobrepeso e a obesidade estão associados à baixa autoestima, ansiedade e depressão. Nesses aspectos as contradições são brutais. Uma sociedade guiada pelos padrões estéticos de beleza, de pessoas magras, o sobrepeso e a obesidade são fatores excludentes. Cria-se uma imagem padrão e alimenta-se para que jovens fiquem fora do padrão. A luta não é apenas contra a balança. É contra a perda de estima e o isolamento social. A solução até o momento? Medicalização da juventude.

Se isso é tão evidente, os problemas tão claros e preocupantes, por que não são alterados? As razões são muitas. Em primeiro lugar, os produtos de consumo são geridos pela capacidade de produção e de distribuição. Grandes empresas de produtos alimentícios são gigantes logísticos. O que fideliza o consumo e cria o hábito é o acesso do consumidor. Para chegarem aos consumidores nos pontos mais distantes eles precisam de shelf life estendido (a data de validade) para suportarem os dias de transporte, armazenagem e exposição.  Produtos ultraprocessados são produzidos com essa lógica.

Há alternativas menos danosas ou até saudáveis, mas, quanto mais saudáveis, mais caros. São produtos de nicho, como os orgânicos, e quase sempre inacessíveis. Além disso, as empresas desse segmento correm em uma pista equivocada de vendas racionais. O argumento lúcido não vence o lúdico. Consumo é afetivo e emocional. Não há brócolis mais atraente do que uma salsicha.

Por mais que as campanhas falem dos malefícios do excesso de bebidas açucaradas, o seu consumo não está em fase crítica de consumo. O motivo é que a população mais pobre encara a possibilidade de acessar os ultraprocessados com uma ascensão social. Beber e comer o que as crianças de outras camadas consomem: um hambúrguer, um refrigerante, um pacote de salgadinhos ou biscoitos… O mecanismo de recompensa atinge em cheio. E engorda os lucros de fabricantes de ultraprocessados e de remédios contra ansiedade e emagrecedores. Um mecanismo simbiótico em que muitos ganham. Em especial os quilos na balança.

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