Daniel Camargos
Repórter especial na 'Repórter Brasil', venceu diversos prêmios por reportagens, entre eles o Vladimir Herzog. Dirigiu o documentário 'Relatos de um correspondente da guerra na Amazônia' e participou da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center.
Daniel Camargos
Zema quer entregar a água dos mineiros para a Faria Lima
O governador aposta na privatização da Copasa para reduzir a dívida de Minas, enquanto se aproxima do BTG e de investidores do centro financeiro de São Paulo


Na manhã de 15 de agosto, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), participou de um café na sede do BTG Pactual, na Faria Lima, em São Paulo. Ao lado de André Esteves, um dos banqueiros mais influentes do País, discutiu economia e perspectivas políticas, segundo nota oficial. Fotos também oficiais mostram sorrisos e um aperto de mão.
A poucos minutos dali, no Edifício Plaza Iguatemi (que possui o metro quadrado mais caro da Faria Lima), ficam os escritórios da Perfin e da Belora RDVC City. A distância é tão curta que pode ser percorrida em cinco minutos de patinete elétrico, sem molhar de suor o coletinho ou gastar a sola do sapatênis.
Essa proximidade não é apenas geográfica: ajuda a entender a conexão entre o governo mineiro, bancos de investimento e fundos que orbitam a avenida símbolo do mercado financeiro brasileiro.
O pano de fundo dessa articulação é o Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados, o Propag, criado em 2024 pelo governo federal. O mecanismo permite que ativos estaduais sejam federalizados ou vendidos para reduzir a dívida pública com a União. No caso de Minas, o passivo ultrapassa 170 bilhões de reais. Para aderir ao programa, Zema enviou à Assembleia Legislativa a PEC 24/23, que retira da Constituição estadual a exigência de referendo popular para a venda da Copasa e da Copanor, responsáveis pela água e o saneamento básico dos mineiros.
O texto original eliminava a obrigatoriedade para todas as estatais, mas o substitutivo do relator, deputado Thiago Cota (PDT), restringiu a mudança ao setor de saneamento, mantendo a regra para a Cemig e a Gasmig, estatais de energia. A proposta foi interpretada pela oposição como uma manobra para flexibilizar a Constituição e acelerar a venda da Copasa. Em consulta pública no site da Assembleia, 11.798 pessoas se manifestaram contra a PEC, contra apenas 321 a favor.
O próprio governador, em reunião com deputados estaduais em julho, reconheceu que a privatização da Copasa era condição para a adesão de Minas ao Propag. Ou seja, não se tratava apenas de leitura da oposição: a ligação entre o programa federal e a venda da estatal foi admitida pelo Executivo mineiro.
Enquanto a disputa avançava em Belo Horizonte, os movimentos na Faria Lima se intensificavam. Dias depois da reunião de Zema com Esteves, a Perfin aumentou sua fatia na Copasa para pouco mais de 5%. Além disso, comprou contratos (derivativos) que funcionam como uma espécie de reserva: se quiser, pode ampliar essa participação para mais de 10% no futuro. No mesmo período, as ações da Copasa subiram na Bolsa.
O BTG não é apenas acionista: administra os fundos da Perfin, dá liquidez e ajuda a definir o preço das ações da Copasa. Ou seja, aparece em várias pontas ao mesmo tempo, o que levantou suspeitas de deputados sobre possível especulação com informações privilegiadas.
Logo depois do café da manhã de Zema com André Esteves na Faria Lima, representantes do banco desembarcaram em Belo Horizonte para reuniões reservadas com cerca de dez parlamentares estaduais, de diferentes partidos, para apresentar seu interesse na privatização
Nesse mesmo enredo, em abril, dois meses após sair da presidência da Copasa, Guilherme Duarte assumiu a incorporadora RDVC City (que depois se tornaria Belora, ligada ao grupo Reag). Mesmo nesse novo cargo, ele continuou no conselho da estatal. Em agosto, no mesmo dia em que a Perfin ampliou sua fatia na Copasa, Duarte deixou a presidência da Belora.
Belora e Perfin estão no mesmo prédio da Faria Lima: uma no 5º andar, a outra no 3º. Para a deputada estadual Bella Gonçalves (PSOL), essa coincidência de endereços e trajetórias forma um “emaranhado” que liga o governo mineiro, o BTG e fundos de investimento na privatização da Copasa.
O curioso é que, nessa trincheira contra Zema, a esquerda ganhou companhia improvável. O PSDB, historicamente adversário do campo progressista em Minas, ressuscitou o slogan ‘Minas não está à venda’ e colocou Aécio Neves em rede estadual para atacar a privatização da Copasa.
Outro ponto de atenção é o conselho de administração da estatal formado em abril de 2024. O colegiado reúne executivos com muita experiência em privatizações e concessões, como Hamilton Amadeo, que foi CEO da Aegea Saneamento entre 2010 e 2020. A presença dele é significativa porque a Aegea, maior operadora privada de água e esgoto do país, já manifestou interesse em adquirir a Copasa.
A atuação do BTG em Minas, contudo, não se restringe ao saneamento. O banco estruturou concessões de rodovias estaduais e, no primeiro semestre de 2025, passou a administrar 2,8 bilhões de reais destinados à expansão do metrô de Belo Horizonte, após decisão do governo mineiro de transferir a conta da Caixa Econômica Federal.
A mudança levou a Assembleia a convocar o secretário de Infraestrutura, Pedro Bruno, para explicar a operação. Com rodovias, metrô e agora saneamento, o BTG consolidou-se como interlocutor privilegiado do governo Zema.
Em paralelo, sindicatos e movimentos sociais têm conseguido barrar a tramitação da PEC na Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia. Com mobilizações e obstruções, já atrasaram a análise do projeto mais de uma vez.
A privatização da Copasa passou a ser um ativo político no projeto presidencial de Zema. Com pouco apoio partidário e distante da base bolsonarista, o governador tenta se apresentar como alternativa liberal em 2026, embora siga flertando com a extrema-direita, muitas vezes via declarações esdrúxulas.
O discurso da eficiência administrativa, sustentado na defesa das privatizações, serve de vitrine para investidores que podem, em tese, financiar sua candidatura. O encontro com André Esteves ocorreu exatamente um dia antes do lançamento de sua pré-candidatura na capital paulista.
Vale lembrar que Esteves foi preso na Lava Jato, em 2015, acusado de obstrução de investigações. Absolvido três anos depois, reassumiu o comando do BTG e voltou ao topo do sistema financeiro. Está em 4º lugar no ranking de bilionários do país, com fortuna de 51 bilhões de reais, segundo a Forbes.
A foto de Zema ao seu lado mostra a aproximação de um governador com ambições presidenciais a um dos banqueiros mais ricos e influentes do Brasil. Quem vê a cena pode até pensar que Zema foi tomar bênção.
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