


Opinião
A indústria do krill arrisca silenciar nosso litoral
Proteger a Antártica não é um gesto distante. É uma questão de soberania climática e de sobrevivência nacional


As baleias-jubarte que encantam o litoral brasileiro todos os invernos carregam em seus corpos uma história de interdependência planetária. Para chegar até aqui, elas dependem de toneladas de krill, um pequeno crustáceo da Antártica que é a base da cadeia alimentar do Oceano Antártico. Sem ele, não há baleias, pinguins ou focas. Sem ele, também se compromete um dos mecanismos mais poderosos de captura de carbono do planeta.
O colapso do krill é um risco real, e sua consequência é muito maior do que a perda de um espetáculo turístico: trata-se de um ataque ao equilíbrio climático global e à nossa própria economia. O krill está sendo sugado por frotas industriais que operam quase o ano inteiro. Países como Noruega e China transformam centenas de milhares de toneladas desse recurso essencial em ração para salmão de cativeiro, cápsulas de ômega-3 e até pet food. É um contrassenso global: devastar o pilar do ecossistema antártico para abastecer mercados supérfluos.
Ao mesmo tempo, o gelo da Antártica, do qual o krill depende para se reproduzir, está derretendo em ritmo recorde. O resultado é um sistema sob pressão: menos gelo, menos krill, menos baleias e mais desequilíbrios que se espalham pelo planeta. E esses desequilíbrios vão da pesca até as massas de ar e frentes frias que são responsáveis por regular o clima no Brasil. O balanço entre a umidade da Amazônia, a umidade vinda do oceano e as massas de ar frio vindas da Antártica regulam nosso ciclo de chuvas.
A desregulação da Antártica já cobra um preço alto do Brasil. Eventos de chuva extrema triplicaram nas últimas décadas, atingindo 83% dos municípios. Só nos últimos 30 anos, as perdas ultrapassaram 145 bilhões de reais, um terço no agronegócio, seguido pelo comércio. Não por acaso, pesquisas recentes de opinião mostram que a maioria dos brasileiros já percebe, no dia a dia, os efeitos das mudanças climáticas: enchentes no Sul, secas no Nordeste e prejuízos diretos ao bolso de milhões de cidadãos.
Diante dessa realidade, a Comissão para a Conservação dos Recursos Marinhos Vivos da Antártica (CCAMLR), órgão internacional que deveria proteger a Antártica, tem falhado repetidamente. Há quase uma década não aprova novas áreas marinhas protegidas e segue refém de vetos geopolíticos. Espaço aberto para a sobrepesca em massa do krill, que ameaça um dos últimos bens comuns globais ainda intocados.
O Brasil não pode se omitir. Com a presidência da COP30 em Belém, temos a oportunidade de pôr a Antártica no centro da agenda internacional, exigindo o fim da pesca predatória de krill e a criação imediata de áreas protegidas. Nosso país já demonstrou liderança ambiental no passado. Hoje, essa liderança é também um ato de pragmatismo: proteger a Antártica significa proteger nosso clima, nossa biodiversidade e nossa economia.
Nesse contexto, o Brasil tem um trunfo raro: é um líder pioneiro em cultura oceânica. Foi o primeiro país do mundo a se comprometer a incluir o oceano em sua Base Nacional Comum Curricular e hoje abriga centenas de “escolas azuis” em quase todo o seu território, reconhecidas pela Unesco por integrarem o mar em suas práticas pedagógicas.
Essa rede de jovens, professores e comunidades conectadas ao oceano é uma base poderosa para formar uma cidadania oceânica ativa e consciente. Ao transformar esse capital humano em diplomacia e liderança internacional, o Brasil pode se projetar como uma verdadeira liderança azul global, capaz de unir ciência, educação e política em defesa do futuro do planeta.
A sobrevivência das baleias que migram pela nossa costa e nos encantam todos os anos começa milhares de quilômetros ao sul, nas águas geladas da Antártica. Defender o krill é garantir que esses gigantes continuem fertilizando o oceano, produzindo oxigênio e inspirando gerações. É também garantir que a Antártica continue cumprindo seu papel de regulação climática, preservando o Brasil e muitos outros países de mais enchentes, secas e perdas econômicas.
Proteger a Antártica não é um gesto distante. É uma questão de soberania climática e de sobrevivência nacional.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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