

Opinião
Um julgamento histórico e o labirinto das circunstâncias
Ainda não há clareza de quem, na ausência do povo organizado, sustentará as decisões que se esperam do STF


É de relevância insofismável o julgamento que se desenrola no STF; relevância intrínseca ao fato, mas certamente ainda maior em face da carga simbólica representada pelo banco dos réus, onde se sentam, pela primeira vez em nossa história (e isto não é pouco), um ex-presidente da República e uma choldra de generais golpistas a ele associados na tentativa de, mais uma vez em nossa história, violentar o processo eleitoral decidido pela soberania popular. E, como de regra, para fazer regredir o processo social e impor o Estado de exceção, que sempre transita do autoritarismo larvar para a ditadura.
Mas isto ainda não é tudo. O julgamento é também relevante pelo que encerra como defesa do sistema democrático-representativo, reacendendo brios esquecidos. Pode mesmo indicar o ponto de partida da recuperação do poder civil, tão aviltado pela preeminência da vontade da caserna, expressa nos tantos putsches, golpes de Estado e ditaduras que promoveu.
Trata-se, pois, de julgamento merecedor do adjetivo de histórico e, fora de dúvida, já pode ser considerado como o mais significativo da vida republicana do STF. É, portanto, um fato novo, tanto quanto alvissareiro, pelo que promete. Mas não se completa em si mesmo, e este é o desafio que desponta, porque não é pequeno nem ameno o caminho a percorrer.
Preocupa que a postura até aqui firme e corajosa da Primeira Turma do STF — a despeito do desempenho do ministro Luiz Fux — surpreendente apenas pela desenvoltura revelada na defesa que fez dos criminosos — não possa ser vista, como seria justo sonharmos que fosse, como a resposta política do Estado atendendo a vigoroso clamor popular. Respaldo que pode faltar mais adiante, quando do anúncio das condenações e das penas com que conta a dignidade nacional.
O espectro de hoje são as ruas (como vimos no último 7 de Setembro) e o Congresso Nacional, no contrapelo do processo social, principalmente na atual legislatura, quando nos faz acreditar na falsidade do fundo do poço da política brasileira.
A miséria multifacetada do Congresso, porém, não é produto do acaso: é o outro lado do crescimento da extrema-direita, que não chegou de mansinho. Os que vivemos o drama de 2018 e a dramática vitória da democracia em 2022, os que acompanham as agruras do governo Lula sem base parlamentar confiável, os que conhecem as raízes da composição do atual Congresso, não podemos afetar surpresa.
Não é prudente menosprezar o papel da extrema-direita global, muito menos o que nos revelam — para quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir — as mobilizações populares da direita e seus associados no Brasil, e o avanço persistente e crescente, nas duas casas do Congresso, da coalizão neofascista, incansável, afoita e irresponsável. Ora derrogando, uma a uma, as conquistas logradas com a Constituição de 1988, ora, como agora, empunhando inédito projeto de anistia ampla e prévia dos presuntivos condenados e de futuros responsáveis por crimes ainda não realizados.
Ou seja, um indulto prévio, um salvo-conduto à disposição de celerados, estimulados pelas pressões do imperialismo, de ação tão ostensiva que não pode mais ser ignorada nem pelos néscios. Projeto de anistia que agora tem suas velas enfunadas pela ofensiva política do inefável Fux — o qual, como bem alerta Conrado Hubner, “não merece ser levado a sério pelo que diz, mas pelo que representa”. E Fux representa, claro, a inserção do extremismo de direita na institucionalidade, mas antes disso a média de um Judiciário classista, sempre pronto para pôr de manifesto sua consciência de classe.
Donald Trump, que acaba de transformar o Departamento de Defesa em Departamento de Guerra, tem feito tudo o que sabemos, e não devemos perder tempo relembrando o que não pode ser esquecido. Cabe tão só o registro de que, no passado 9 de setembro, quando se colhiam os primeiros votos no STF, a Casa Branca voltou a atacar.
Lê-se na primeira página da edição da Folha de S. Paulo de 10/09/25: “Questionada se os EUA preveem mais sanções ao Brasil pelo julgamento de Jair Bolsonaro (PL), a porta-voz da Casa Branca, Karoline Leavitt, disse que Donald Trump impôs taxas para proteger a liberdade de expressão e que o país não teme ‘usar o poder econômico e militar’ para defendê-la”.
Na lógica do lobo, “liberdade de expressão” pode ser qualquer coisa — como já foram as inexistentes armas atômicas de Saddam Hussein. Nada de novo no front ocidental, pois, e nada diverso se deve esperar do gigante do Norte, agressivamente atormentado pela sua decadência.
Mas, a propósito, é impossível ignorar, como preparatório do que quer que seja, o desalentador recado que nos deram no dia 7 de setembro as manifestações da extrema-direita no Rio de Janeiro e em São Paulo, quando uma multidão calculada em 42 mil pessoas estendeu na Avenida Paulista uma gigantesca bandeira dos EUA. No Rio (outros 42 mil bolsonaristas ululantes), eram contadas às centenas as bandeiras e bandeirolas dos EUA e de Israel. Bonés traziam a inscrição “Make America Great Again”, enquanto improvisados saudavam o presidente dos EUA, numa contingência em que o Brasil é atacado como talvez jamais o tenha sido em tempos de paz e de relacionamento bilateral de dois séculos, até aqui tido como amistoso.
Essa subserviência ideológica extrema, essa vexaminosa ausência de brio, esse divórcio com qualquer sentimento de nacionalidade eram, até aqui, desconhecidos entre nós. Nasce uma direita especiosamente entreguista e antinacional. O que nos cobra reflexão e, se possível, análise crítica.
A este respeito, importa nos darmos conta, para além dos números, e para não nos iludirmos, do aspecto qualitativo do apoio popular de que o neofascismo (que aqui atende pelo nome fantasia de bolsonarismo) ainda desfruta entre nós: todos sabiam quem era Jair Bolsonaro já em 2018, pois o político fluminense jamais fez segredo de suas intenções e ideário político, antes pelo contrário — e ainda assim, ou por isso mesmo, 57,8 milhões de votos o levaram ao Planalto; em 2022 conhecia-se, ademais, o caráter de sua passagem pela Presidência, inclusive a criminosa condução do enfrentamento à pandemia, e não obstante isto, faltou pouco, muito pouco, para o capitão ser reeleito; neste 2025 é amplamente conhecida a formação de uma quadrilha, por Bolsonaro e seus áulicos, para retomar o poder perdido nas urnas, derruindo o sistema democrático e praticando assassinatos. Ainda assim, apesar disso tudo, o extremismo de direita segue levando milhares de pessoas às ruas e ameaçando o país — embora a classe dominante, ou parte dela, hoje se mostre indisposta a repetir a aventura.
E não se pode ignorar que o bolsonarismo conta com o apoio da maioria dos governadores e prefeitos, a maioria do Congresso e, de quebra, três ministros no Supremo. Não é pouca coisa para um projeto de poder.
Voltando: foi burocrática, infelizmente apenas burocrática, a resposta do Itamaraty à insolência da Casa Branca, sinalizando que nosso governo, inexplicavelmente silente diante da praça de guerra em que os EUA transformaram o Caribe — na cabeça de nosso continente —, ainda não entendeu o real significado da crise na qual o labirinto das circunstâncias históricas nos inseriu.
Nem o governo, nem o que se chama de sociedade organizada, tanto quanto o movimento social, se deram conta de que independência e soberania nacional não se conquistam, nem se defendem, nem se conservam com meras — ainda que belas — palavras de ordem ou discursos patrióticos que, carentes de ação, de imediato caem no vazio para logo serem esquecidos.
Pois a consciência crítica que não se faz ação perde-se no ar, inúteis e estéreis são as palavras, palavras e palavras que o bardo pôs na voz de Hamlet para expressar este vazio.
No caso concreto que nos aflige, não basta torcer pelas condenações com as quais o STF promete nos acalentar. É preciso cobrá-las com nosso apoio ativo, e reunir forças para assegurar a execução das possíveis penas.
A defesa da independência e da soberania nacional, tão vexaminosamente atentadas pelo imperialismo norte-americano (Trump é apenas um agente; não é um louco nem um desvairado, embora bravateiro), pede ação concreta — e nada de considerável produzimos até aqui.
Não há democracia e não há soberania sustentáveis se ambas não tiverem, em suas bases, a consciência e a ação de um povo organizado. O que estamos fazendo para politizá-lo, dando-lhe consciência do real desafio?
Povo tampouco é mera figura de retórica, e é muito mais do que o ajuntamento de pessoas, do que um coletivo. Povo só é agente político quando está organizado e se mobiliza, ou é mobilizado em função de um projeto: um projeto de vida, uma visão de mundo, uma utopia que seja. A praça só é do povo quando ele a ocupa, conhecendo seu destino. Não se põe de pé uma democracia falha de povo em sua base, e o grito de soberania nacional não caminha para além da retórica quando carece de força para garanti-lo.
Soberania, além de povo disposto a preservá-la por razões afetivas ou políticas, carece de condições objetivas de defesa e ataque: serviço de inteligência digno do nome e forças armadas próprias, autonomamente equipadas, senhoras de autonomia tecnológica, apoiadas em indústria bélica própria, fornecedora de suas armas, de seus equipamentos, de suas munições, capazes de defender nosso povo, sua cultura, suas riquezas e a integridade territorial. Além de tropas bem formadas. Tudo o que nos falta — e nosso governo ainda não disse à nação qual é seu projeto de defesa nacional.
Na contramão das necessidades objetivas, carecemos ainda de um projeto de nação, certamente a fonte de todos os nossos problemas. Ainda não nos foi dado definir que país queremos ser e fazer, nem mesmo sabemos, por isso mesmo, de que Estado carecemos.
Em plena crise, acossado por tantas e tantas ameaças, com nosso desenvolvimento econômico coartado, renunciámos à revolução social e às reformas mínimas — aquelas que podem ser operadas dentro da ordem, como o foram nos países capitalistas desenvolvidos (desenvolvidos porque as enfrentaram). Reformas que, nos anos 1960, eram chamadas de “reformas de base” e entusiasmaram o país.
O mundo entra em crise como resultado da inevitável crise de hegemonia que abala o sistema internacional de dominação. Dessa crise, que ameaça a paz e a soberania dos Estados, não estamos livres; mas, nela partícipes a contragosto, seremos condenados ao papel de peão num jogo de xadrez em que se movimentam mais de um rei na mesma quadra, se não tivermos competência para, compreendo o cenário da grande disputa, decidir nosso destino.
Mas o país parece tranquilo. As ruas estão desertas de nossa gente; a Universidade, apaziguada embora pobre de recursos, deixou de inquietar; os sindicatos não mais assustam.
Por consequência, não há clareza de quem, na ausência do povo organizado, sustentará as decisões que se esperam do STF.
*Com a colaboração de Pedro Amaral
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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