Diálogos da Fé
Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões
Diálogos da Fé
O Brasil contra a Maré
Na terça-feira 6, cinco mortos e oito feridos restaram de uma operação do Bope no complexo de favelas no Rio de Janeiro. Quem se importa?


“O que está acontecendo, Jacinto?”, perguntou a madame visivelmente irritada com o trânsito naquela hora da manhã. A Avenida Brasil nunca foi uma maravilha, mas para uma terça-feira a coisa estava muito complicada.
O motorista, sempre bem informado, ouvira no rádio que uma operação do Bope na Favela da Maré tinha apavorado a comunidade durante a madrugada, mas nem podia sonhar que no meio da avenida, levado por um carrinho de mão, jazia o corpo do professor William de Oliveira, morto pela manhã, certamente saindo pra mais um dia de trabalho.
“Parece que tem um corpo ali na frente”, avisou. A patroa se mostrou horrorizada. A movimentação dos carros de polícia, fumaça preta subindo, gente desesperada. Um caos. “Liga o rádio, Jacinto.”
Leia também:
O exemplo dos pastores Hamilton e Green
O massacre de xiitas pelo exército da Nigéria
Logo souberam o que estava acontecendo: “Tratava-se de uma ação emergencial. Segundo informações, bandidos da Maré e inclusive de outras comunidades estavam em reunião no complexo. Eram traficantes de várias favelas”, informava o locutor. “No total foram cinco mortos e oito feridos, mas nenhum traficante foi preso.”
“Bom, ao menos cinco marginais a menos”, disse a madame com ar de desprezo. “Mas parece que tinha um professor de 35 anos e uma tal de Zezé, que era tatuadora, moça nova de uns 40 anos”, retrucou educadamente o motorista.
“Jacinto, morando na favela? Coisa boa não pode ser. Gente de bem se esforça e dá um jeito de sair dessa vida. Um inocente ou outro sempre vai morrer. Como a polícia vai adivinhar?”
Mal sabia a patroa que seu motorista morava em uma comunidade das mais perigosas. Um sobrevivente que tinha que esconder o próprio endereço para manter o emprego.
As informações chegavam ainda truncadas, mas davam conta de que os corpos do professor e da tatuadora haviam sido levados para o meio da Avenida Brasil, causando o caos naquela manhã.
Moradores revoltados. A rigor, nenhuma força policial, nem o Bope, poderia fazer esse tipo de operação na comunidade durante a noite. Os rumores eram de que nunca houve reunião alguma e que isso era só um pretexto para a polícia invadir a favela.
Dona Miquelina vendia café e bolo bem na entrada da comunidade. Acordava cedo, antes mesmo dos trabalhadores da estiva e entre um bom dia e outro se acostumara com o barulho dos tiros. Não conhecia o professor William, mas compartilhava da mesma revolta e chorava com os demais moradores.
Um terceiro morto estava identificado, era o Thiago Ramos Pereira, que chegou morto ao Hospital Federal de Bonsucesso com um tiro na cabeça.
Ainda restavam outras duas vítimas que não tinham sido reconhecidas. “É muita mãe chorando, minha filha. Só a gente é que sabe a agonia que é morar num lugar desses. Agora nem quem sai pra trabalhar está em paz. Quem respeita pobre, minha filha? Quem respeita preto?”, lamentava Dona Miquelina entre um café e um bolo.
A vida triste do povo da favela não comovia a madame. Jacinto ouvia as frases feitas que ela soltava à medida que sua irritação com o trânsito aumentava. De “bandido bom é bandido morto” até “por que não jogam uma bomba e acabam com essas favelas de uma vez”.
O motorista se continha e seguia a ponderar educadamente. “Tem pessoas na comunidade, gente trabalhadora.” Ela seguia em sua prepotência: “Se fossem esforçados não moravam num lugar desses”.
Jacinto foi ouvindo, ouvindo, ouvindo, até que não aguentou. “Escuta aqui, minha senhora, eu nasci preto e pobre no interior da Bahia, tô há mais de 30 anos nesse Rio de Janeiro e sabe o que eu consegui com esforço? Uma casa na favela. Construída com sacrifício e com o apoio do povo da comunidade, que bateu laje e assentou tijolo por um prato de feijoada, por amizade e solidariedade, porque na favela uma mão lava a outra.”
“A senhora lá sabe o que é solidariedade? O que é dividir o pouco que tem pra ajudar um vizinho? Eu trabalho na sua casa e levo marmita. Nunca passei da cozinha pra sala. Nunca tive hora pra sair, mas se atrasar 10 minutos a senhora desconta. Nunca lavou um copo, nunca abriu a porta do carro, nunca pegou uma fila de banco e vem me falar de esforço? Pra que que serve meu esforço? Pra manter sua riqueza e seus privilégios?”
“Que insolência é essa, Jacinto? Sempre te tratei bem, mas o que é certo é certo. Tem que ser assim, cada um no seu devido lugar. Eu não tenho culpa se mataram essas pessoas. Elas deviam ter tomado mais cuidado. E quem garante que foi a polícia? Podem ter sido os próprios traficantes. Essa gente se mata entre si. Agora, uma professor morando na favela? Deve ser um desses doutrinadores comunistas que ficam incitando pobre a lutar pelo direito de invadir a propriedade alheia. Onde já se viu?”
A madame prossegue: “Olha, Jacinto, sempre te tratei como uma pessoa da família, mas estou decepcionada. Sempre te achei um homem bom. Apesar de ser uma pessoa de cor, sempre foi muito educado, mas você nunca me disse que morava na favela e agora levanta a voz e vem me questionar.”
O trânsito fluiu um pouco. No rádio, o noticiário dava conta das últimas informações: “Além do Bope, participam da ação o Batalhão de Polícia de Choque e o BAC (Batalhão de Ações com Cães). Os grupos atuam nas comunidades do Parque União e Nova Holanda. De acordo com a polícia, o 22º BPM (Maré) montou um cerco no local. O objetivo da ação, segundo a PM, é restabelecer a rotina dos moradores e prender os criminosos envolvidos na disputa do tráfico de drogas no local.”
“Está vendo, Jacinto? Daqui a pouco tudo fica como antes e ninguém nem vai lembrar que essas pessoas morreram. Infelizmente, isso faz parte da rotina dessa gente. Quem mora na favela já sabe que é assim mesmo. É só procurar outro lugar pra morar. Você devia se esforçar também pra sair da favela. Sua sorte é que sou boa e não vou te demitir por causa desse seu rompante, mas que não aconteça nunca mais.”
O carro avançou e logo se viram os corpos no meio da avenida. Jacinto respirou fundo, olho bem nos olhos da madame e disse: “Fique tranquila, senhora, isso nunca mais vai acontecer.”
Calmamente abriu a porta e desceu. Passou pelos corpos, fez o sinal da cruz, tirou o terno preto, pediu à Dona Miquelina um café e um pedaço de bolo e nunca mais olhou pra trás.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.