Memória
Bob Fernandes lembra Mino Carta
Na mesma semana, três grandes do Brasil se foram. Jung chamaria de “sincronicidade”; Freud, de comunicação entre inconscientes


Em Roma, chega mensagem de uma querida amiga: “Mino Carta se foi”. Em Roma estávamos há exatos 30 anos. Mino e seu grande amor, Angélica, sempre partindo do hotel onde se hospedava, o Albergo d’Inghilterra, o “Giro Carta”: caça por ele conduzida aos Caravaggios disponíveis na cidade. O roteiro incluía almoços e jantares magníficos na cidade, que ele tão bem conhecia.
Conheci Mino Carta há quarenta anos. Trabalhamos juntos por 15 anos, com uma década de convivência cotidiana, tanto profissional quanto pessoalmente.
Mino era culto, espirituoso, divertido. Orgulhoso por saber-se também um grande pintor. Francis Bacon foi uma inspiração, basta ver telas suas. Se empenhava em esmiuçar a pintura e a lendária história do genial Caravaggio, esmiuçando-as em detalhes. Contava sobre o mestre italiano da juventude.
Era também extraordinário na cozinha. Nos prodigiosos jantares, quase sempre aos sábados, Mino era secundado por Severina, que trabalhou em sua casa por 45 anos e lá, como costuma dizer, criou seus dois filhos.
Severina foi tão leal e próxima a Mino quanto Políbio Alves Viera, o queridíssimo Dó, motorista, assessor pra quase tudo e amigo de Mino por mais de 50 anos. O sagaz sertanejo era autor da máxima que Mino não economizava ao distribuir: “Isso é um bando de corja”.
Na redação, e também trabalhando com Mino por décadas, a fiel escudeira Mara. Mino batucava seus textos na Olivetti; Mara digitava.
Angélica, os filhos Gianni e Manuela, os netos Nicola, Sofia, e as netas Maria Clara e Nikole, foram sempre seus grandes amores.
Angélica, que adoeceu e se foi poucos anos depois de criada CartaCapital, tinha a rara capacidade de conseguir conter seus impulsos mercuriais.
Algo do que Mino contava sobre a mãe autoritária atormentando o pai, Giannino, sua referência e modelo, fornece pistas para tais impulsos. Impulsos episódicos e nunca desatados em direção a quem ele de fato respeitava.
Outra grande referência em sua vida foi o jornalista Claudio Abramo, a quem Mino muito admirava como profissional e amigo.
A propósito de respeito (ou ausência dele), Mino pregava respeito absoluto ao jornalismo autoral; no entanto, fazia questão de frisar que esse respeito não era incondicional: era aconselhável, ou melhor, inevitável que o autor ou a autora soubesse o que e como estava relatando, no conteúdo e na forma.
1. Com Jânio Quadros, que foi seu professor antes de enveredar pela política 2. Ao lado de José Sarney 3. Uma entrevista com Tancredo Neves 4. Em um jantar com Roberto Campos e Delfim Netto 5. Golbery do Couto e Silva foi uma fonte preciosa 6. Com Teotônio Vilela 7. Em petit comité, na companhia de Fernando Henrique Cardoso 8. Papo descontraído com Leonel Brizola 9. A entrevista com o metalúrgico Lula recém-saído da prisão 10. No Palácio da Alvorada, em uma das últimas entrevistas de Dilma Rousseff como presidente 11. Em seu apartamento em São Paulo reuniu Pepe Mujica e Lula 12. Ulysses Guimarães lhe deu uma missão durante a campanha das Diretas – Imagem: Hélio Campos Mello, Roberto Stuckert Filho/PR, Filipe Araújo/PT e Acervo Pessoal/Mino Carta
Mino ouvia e assimilava duras verdades. Mas isso pedia um código: jamais em público, nunca com testemunhas.
Solidário com os amigos, generoso a ponto de por vezes soar ingênuo, seu foco não era o dinheiro ou o “sucesso” financeiro. Sempre foi – com grande empenho e por vezes exageros – a estruturação do seu legado pessoal no jornalismo brasileiro.
Este zelo era imposto a cada “fechamento”. Lendo, debatendo com o editor ou autor, desenhando cada página.
A dimensão deste legado, agora exposta depois de morto, lhe foi negada e tantas vezes silenciada em vida. Estrondoso silêncio fruto, em parte, de suas idiossincrasias. Mas quem não as tem?
Idiossincrasias, as dele, muitas resultantes de lutas nas quais tinha e teve razões. Uma ou outra das razões, contudo, acabava por se contaminar com seus impulsos, turvando o embate.
Razões teve em boa parte das lutas contra interferências e posições dos “patrões” e seus porta-vozes. Razões também em decorrência de lutas e enfrentamentos na ditadura.
Defeitos? Quem não os tem?
Por vezes, por perder-se no olhar excessivo sobre si e suas razões, cultivou afastamentos.
Seu eurocentrismo, que nunca escondeu, era ao mesmo tempo uma arma. Genova, Roma, a Itália, Dante… citações constantes. Seu Nirvana mas também provocação em busca de um Brasil por ele idealizado. E que poucas vezes esteve a caminho de se tornar realidade.
Mino via em Lula, desde o final dos anos 70 no sindicalismo no ABC, o caminho mais próximo para o Brasil que sempre quis. Mesmo quando amaldiçoava o país, e nisso importante papel tinha, claro, a seleção italiana, a Copa de 82. A derrota do Brasil para a Itália no Sarriá.
De Lula, Mino ficou afastado alguns anos, depois de conhecer intriga feita numa viagem de campanha eleitoral. Intriga feita por quem Mino sabia ser seu adversário. Lula, que desconhecia o porquê do afastamento, ao saber do motivo recolocou a amizade e o mútuo respeito no rumo com um telefonema, no primeiro semestre de 2002.
***
Quatro Rodas, Veja, Jornal da Tarde, Jornal da República, Isto É, Senhor, Isto é/Senhor… agora, enfim, se recita, se dá amplo conhecimento sobre criações que Mino comandou com talentosas equipes.
CartaCapital nasceu na sequência de desalento com o rompimento e saída da direção da Isto é/Senhor, de Domingo Alzugaray. No final de 93, início de 94, um experimento.
Com alguns perfis de políticos, uma edição de “Vogue Poder”. Em conversas no primeiro trimestre de 94, os esboços de uma revista mensal para ser lida por 40 mil pessoas.
Reuniões em sua casa, com Nelson Letaif, Wagner Carelli, e eu. Dessas conversas, inspirado na revista alemã “Capital”, o primeiro nome pensado.
“Carta”Capital surge em homenagem a seu irmão, Luigi, pai de Andrea, que dirigia a Vogue no Brasil. Luigi morreu na Espanha, onde trabalhava na Condé Nast, quando estruturávamos o projeto.
Dirigi a sucursal da IstoÉ/Senhor em Brasília por três anos, de abril de 1989 a dezembro de 1991. Nos dois anos seguintes, fui correspondente nos EUA. Depois, passei dez anos na CartaCapital, oito deles como redator-chefe. Do que vi e vivi em 15 anos de convivência, houve quatro encruzilhadas definidoras.
A primeira, em outubro de 1990. Seis meses do governo Collor, a revista publicava a primeira de uma série de capas sobre o tema: “Ele complica a vida do governo”. Era sobre PC Farias, quem era, como agia nas sombras, o que buscava. No fechamento, início da tarde de sexta-feira, Mino telefona e relata:
— Você deve ter ligado para ouvi-los. Um emissário do governo, jornalista, acaba de sair daqui, foi à sala de Domingo [Alzugaray, dono da revista e da Editora Três] rogando para que sua reportagem não seja publicada. Respondi que isso só confirma as denúncias e que a reportagem sairá.
Ao ouvir que eu não teria condições de continuar se a matéria fosse barrada, Mino acrescentou:
— Vamos aguardar. Já informei isso ao Domingo. Não sou o dono e patrões podem ser suscetíveis a ouro, incenso e mirra. Também isso já disse.
A reportagem, primeira de uma longa série, foi publicada. Semanas depois, num jantar no restaurante Florentino, em Brasília, o próprio Domingo me contou detalhes do episódio e da quantia de “ouro” que recusou.
Anos depois, já nos 2000, CartaCapital tornou-se semanal, após ser mensal e quinzenal. Mino me ofereceu sociedade: 28%.
Respondi que seria incompatível com minha função múltipla. Eu era redator-chefe, mas também autor de capas delicadas. Ser sócio imporia um obstáculo intransponível: o tempo já havia mostrado isso, tanto na IstoÉ/Senhor quanto na própria Carta, antes de virar semanal.
Entre essas capas, “Wanted”: cartaz de velho oeste com os donos do futebol brasileiro de então — Ricardo Teixeira, presidente da CBF, “Caixa d’Água”, da federação do Rio, e Farah, da paulista. Suas respectivas capivaras expostas.
Romário voltara ao Brasil, no Flamengo, numa operação que envolvia um banco e braços da CBF. O banco tinha campanha anual de publicidade na CartaCapital. Amigo de Mino desde 1968, quando trabalharam juntos na Veja, e sócio da Carta já semanal, Belluzzo só me contaria anos depois:
— Com aquela reportagem, houve pressão enorme e o banco deixou de anunciar. A revista perdeu 800 mil reais naquele ano.
Era início do Plano Real, dólar paritário: 800 mil dólares. E Mino nada me disse a respeito.
Com a revista já semanal, outro grande empresário, amigo de Mino há 30 anos, bancava 18% da publicidade anual. Mino estava na Itália quando chegou à redação um longo artigo, sem assinatura: ataques dele a um rival do mesmo ramo. Disse a Belluzzo:
— Se ele quiser dar entrevista, publicamos. E daremos igual espaço a quem ele denuncia. Mas isso, eu não publico. Se você e Mino acharem que estou errado, me demitam.
Belluzzo respondeu:
— Faz muito bem em não publicar.
De volta da Itália, Mino disse:
— Você fez o que é correto.
O empresário encerrou sua participação. Perda de 18% da receita anual. Já o adversário, alvo da denúncia não publicada, tornou-se depois tema de reportagens sobre seus negócios. Após se recusar a responder, marcou uma conversa por intermediário: ele e seu sócio mais próximo.
Almoço de duas horas na Forneria San Paolo, na rua Amauri. Ali, ouviu:
— Tem lugar que é com dinheiro. Aqui, é com informação. Você terá a capa e quantas páginas forem necessárias, com uma condição: eu pergunto, você responde e nada será alterado.
Resposta em dois dias. A revista entraria em férias de fim de ano, a entrevista seria feita depois. Não houve resposta.
Na volta das férias, surpresa: uma empresa do mesmo grupo decidiu aportar 500 mil reais em publicidade, por semestre. Ao saber, informei a Mino:
— Essa empresa é do mesmo dono que não aceitou ser entrevistado, e ele deverá ser condenado em maio.
Mino respondeu:
— Se assim é e for, quando condenado publicaremos.
Condenado o empresário, os fatos saíram devidamente. E mais um grande anunciante se foi — com direito a ter o episódio relatado por Mino em editorial.
Belluzzo testemunhou esses e tantos outros casos. Rumo ao digital, deixei CartaCapital no final de 2004.
Há mais de 20 anos, em parceria com a guerreira Manuela Carta, Belluzzo segue com a revista. Resistiu ao cerco e ao silêncio nos anos FHC. Capas como “Vale, venda barata de um projeto de país” e a do Brasil “quebrando” sob Fernando Henrique custaram a ausência de publicidade federal, por anos.
Enquanto outras publicações silenciavam sobre grandes reportagens da Carta por ser Mino seu dono, não faltaram esbirros para chamá-la de “chapa-branca” quando, já no primeiro governo do PT, voltou a ter modesta publicidade técnica.
CartaCapital segue, e seguirá, com Manuela e Belluzzo.
Na mesma semana, três grandes do Brasil se foram. Jung chamaria de “sincronicidade”; Freud, de comunicação entre inconscientes.
Verissimo, genial, levou milhões à literatura, fez pensar e, sobretudo, rir nos piores momentos da nossa história.
Silvio Tendler, cineasta brilhante, será sempre griô: guardião da memória coletiva, contador da história do Brasil.
Mino Carta, querido e próximo amigo durante anos, é, por tudo, um gigante do jornalismo brasileiro.
E partiu exatamente quando estão no banco dos réus, a caminho da condenação, personagens que encarnam o que há de pior no país: a secular voracidade, a sanha da tutela militar, a ode à ignorância, a truculência, a ganância travestida de hipocrisia, a mesquinhez.
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