Política
Farra imobiliária
Câmara Municipal instala CPI para investigar desvio de finalidade em subsídios para a habitação popular


Nos últimos anos, São Paulo tem reafirmado sua fama de, movida pela força da grana, “erguer e destruir coisas belas”, como imortalizou Caetano Veloso na canção Sampa, um verdadeiro hino à capital paulista. No centro expandido e nas imediações de estações de metrô, é difícil caminhar por dois ou três quarteirões sem testemunhar a demolição de um casarão antigo ou o surgimento de um novo prédio, ostentando anúncios de lofts e studios imperdíveis, com menos de 30 metros quadrados. O que poderia ser uma resposta ao grave déficit habitacional da maior cidade da América Latina revela-se, na verdade, uma vitória da especulação imobiliária. Os cartazes costumam valorizar mais a “oportunidade de investimento” do que o “sonho da casa própria”, e grande parte dos compradores pretende apenas explorar os imóveis em plataformas de aluguel por temporada.
O que pouca gente sabe é que muitos desses minúsculos apartamentos foram construídos com subsídios públicos. Deveriam beneficiar a população de baixa renda, mas acabam favorecendo investimentos das classes média e alta. Para piorar, a proliferação de imóveis anunciados em plataformas como Airbnb e Booking reduz o estoque disponível para aluguéis de longa duração. A disparada dos preços dificulta ainda mais o acesso dos trabalhadores à moradia digna. Esse desvio de finalidade, propiciado por possíveis fraudes e outras irregularidades, está agora na mira da CPI das Habitações de Interesse Social (HIS), instalada na Câmara Municipal na quinta-feira 4.
A partir do Plano Diretor de 2014, a prefeitura transferiu ao setor privado a responsabilidade de construir habitações populares para famílias com renda entre 3 e 10 salários mínimos. Na prática, incorporadoras passaram a receber subsídios para erguer moradias destinadas à população de baixa renda. A medida aqueceu o mercado da construção civil: enquanto, em 2010, foram entregues 5.748 unidades de HIS, em 2020 esse número saltou para 49.589. No entanto, o déficit habitacional permanece elevado. Somente em 2023, com a revisão do Plano Diretor, começaram a ser identificadas fraudes nos contratos de compra e venda.
De acordo com o vereador Nabil Bonduki (PT), vice-presidente da CPI, as empresas lucram dos dois lados. “Muitas incorporadoras aprovam projetos como Habitação de Interesse Social e, assim, recebem diversos benefícios, mas depois vendem sem respeitar as faixas de renda que deveriam ser beneficiadas”, denuncia o petista, professor titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. A CPI, explica Bonduki, investiga fraudes cometidas por incorporadoras, construtoras, corretoras imobiliárias e o papel das instituições financeiras.
Apesar do flagrante desvio de finalidade, vereadores da base do prefeito Ricardo Nunes fizeram de tudo para evitar a instalação da CPI, aprovada em abril. A comissão só começou a funcionar por determinação do Tribunal de Justiça de São Paulo, após ação movida pelo PT e pelo PSOL. Mesmo diante da decisão, a presidência da Câmara recorreu ao Supremo Tribunal Federal para tentar barrar a investigação.
Para a vereadora Sílvia Ferraro, do PSOL, “Nunes fez lobby entre os partidos governistas para que não indicassem integrantes à CPI”. O presidente da comissão, Rubinho Nunes (União Brasil), minimiza o impasse, mas admite que as legendas realmente demoraram a apresentar seus representantes. Segundo Bonduki, milhares de compradores também foram lesados. “Inúmeras pessoas da classe média compraram apartamentos sem saber que se tratava de moradia popular, sem se enquadrar na faixa de renda, e tiveram problema ao registrar os imóveis.”
Diante da inevitabilidade da investigação, parlamentares da base optaram por iniciar os trabalhos com a convocação do presidente da Caixa Econômica Federal, Carlos Antônio Vieira Fernandes, como se o executivo fosse responsável por analisar os contratos na ponta. Trata-se de uma tentativa de desviar o foco, transferindo ao governo federal – controlador da Caixa – a responsabilidade por uma fiscalização que deveria caber, antes de tudo, às autoridades municipais.
Moradias sociais têm sido destinadas a investidores com alto poder aquisitivo
Há tempos o deputado federal Guilherme Boulos (PSOL) denuncia a farra imobiliária em São Paulo. “A omissão do prefeito fez com que milhares de paulistanos perdessem o acesso à moradia”, afirma. “Não podemos permitir que construtoras, mancomunadas com o Poder Público, sigam enchendo os bolsos com quitinetes de 20 metros quadrados, num esquema bilionário, à custa de quem mais precisa.”
Professora da Fundação Getulio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Bianca Tavolari detalha a origem do problema. Em São Paulo, o modelo de Habitação de Interesse Social não funciona como o programa federal Minha Casa, Minha Vida, que envolve crédito facilitado e controle público. Na capital, “incorporadoras privadas escolhem se constroem unidades HIS, definem quantidade, metragem e preço, sem necessidade de convênio com a prefeitura”. O principal incentivo é a isenção da outorga onerosa do direito de construir, que deveria baratear os imóveis, mas isso não tem ocorrido.
Segundo Tavolari, a prefeitura falhou na fiscalização. “De 2014 até 2023, quem controlava isso? A própria construtora ou incorporadora”, diz. A situação piorou em 2020, quando o sistema de licenciamento municipal foi substituído por uma plataforma digital doada pelo Secovi, sindicato das empresas do setor. Desde a implementação do Aprova Digital, prossegue a professora, ficou “quase impossível obter qualquer tipo de informação”.
As suspeitas de fraude ganharam visibilidade no fim de 2022 e início de 2023, levando à abertura de um inquérito pelo Ministério Público. Para Tavolari, o próprio desenho da política apresenta falhas. Ela explica que não há uma definição clara de “família” para a concessão do subsídio a quem ganha até seis salários mínimos. Assim, um indivíduo com renda de 9 mil reais, mas que vive sozinho, pode ser considerado elegível pelos critérios da prefeitura – mesmo pertencendo aos 10% mais ricos. “Essa falha desvirtua o objetivo da política, sem que haja fraude legal”, conclui.
Rodrigo Iacovini, diretor-executivo do Instituto Polis, destaca que o número de pessoas em situação de rua cresceu 31% em São Paulo em dois anos. Uma pesquisa da organização revela ainda que há 87 mil domicílios vazios e mais de 2 milhões de metros quadrados de terrenos ociosos na região central, espaço suficiente para abrigar 200 mil moradias. “Claramente, há uma disputa por áreas com estrutura urbana mais privilegiada.”
Em nota, a prefeitura diz reafirmar “seu compromisso com a execução transparente da política habitacional na cidade e, por essa razão, editou, em maio deste ano, o Decreto nº 64.244/2025, que reforça o controle e a fiscalização da produção de moradias populares (HIS e HMP)”. •
Publicado na edição n° 1379 de CartaCapital, em 17 de setembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Farra imobiliária’
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