Opinião

O juiz, o jurisconsulto e outros juízes

O voto trepidante do ministro Luiz Fux traz à memória a entrevista concedida por ele em 2012 à jornalista Monica Bergamo

O juiz, o jurisconsulto e outros juízes
O juiz, o jurisconsulto e outros juízes
O ministro Luiz Fux abre o 4º dia de julgamento da trama golpista na Primeira Turma do STF. Foto: Rosinei Coutinho/STF
Apoie Siga-nos no

O voto trepidante do ministro Luiz Fux traz à memória a entrevista concedida em 2012 à jornalista Monica Bergamo. Indicado por Dilma Rousseff, Fux ofereceu um depoimento a respeito das circunstâncias que guiaram sua honorável escolha. Publicada na edição de 2 de dezembro de 2012 na Folha de S. Paulo, a entrevista foi o assunto dos jantares de domingo com amigos e companheiros.

Entre as mastigações de um desses regabofes, ouvi um respeitável jurisconsulto entretecer seus espantos com as revelações do ministro. Não os espantos raivosos das personalidades narcisistas que vomitam suas certezas nas colunas do leitor, nos Facebooks e Twiters da vida.

Eram espantos que se movem entre a ironia e o ceticismo, como os que frequentam as páginas das Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Em seu périplo de candidato, Fux prometeu a quase todos os membros do governo “matar no peito” o processo do Mensalão. Na véspera de sua indicação, nos píncaros da ansiedade, queixou-se a seu motorista: “meu deus do céu, acho que essa eu perdi”. Para completar o circuito de expressões pós-modernas, só faltou exclamar: “chegou minha vez” ou na versão mais popular, “é nóis”. Assim, Fux se incumbe de esculpir sua própria imagem.

O capítulo CXXXIX (139) do romance de Machado de Assis é intitulado “De Como Não fui Ministro d’Estado. Está em branco. O Capitulo seguinte, CXL (140), denominado “Que Explica o Anterior” sentencia: “Se a paixão do poder é a mais forte de todas, como alguns inculcam, imaginem o desespero, a dor, o abatimento do dia em que perdi a cadeira da Câmara dos Deputados.” 

O jurisconsulto contrastou a esfuziante egotrip do magistrado Fux com o discurso de despedida de outro juiz nos idos de 1965. Uma coincidência biológica me proporcionou a ventura de frequentar as lições desse juiz durante sessenta anos. Pouco antes de sua morte, roguei que me entregasse seus discursos, poesias não publicadas e sentenças prolatadas. Cedeu. Sua modéstia e recato me cobraram energicamente o compromisso de não divulgar os escritos.

Prometi. Mas, para revigorar o superego, cultivo o hábito de confabular à noite com seu espírito. Na passagem de domingo para segunda, pedi licença para revelar um trecho, apenas um trecho de um de seus discursos. Antes de conceder, brandiu argumentos a respeito da inutilidade do cometimento. Na essência, ele dizia que a sociedade e os indivíduos de hoje não compreendem os significados de ontem.

Entre recriminações à minha teimosia e críticas ao meu descuido com suas observações, o velho juiz recomendou o trecho de sua preferência.

Escolhi o discurso de 1965 proferido por ocasião sua aposentadoria. Aposentou-se por temer a invasão de suas prerrogativas de juiz independente por um esbirro fardado das oligarquias golpistas. Nada de heroico, apenas submissão aos valores liberais e republicanos que guiaram sua vida desde os tempos da Faculdade de Direito de São Paulo.

Ele falou aos amigos que o homenageavam:

“Preferi a tranquilidade do silêncio ao ruído das propagandas falazes; não suportei afetações; as cortesias rasteiras, sinuosas e insinuantes jamais encontraram agasalho em mim; em lugar algum pretendi subjugar, mas ninguém me viu acorrentado a submissões; dentro de uma humildade que ganhei no berço, abominei a egomania e a idolatria; não me convenceram as aparências, e para as minhas convicções busquei sempre os escaninhos. No exercício das minhas funções de magistrado, diuturnamente, dei o máximo dos meus esforços para bem desempenhá-las, e, ainda que em meio de uma atmosfera serena e compreensiva, em nenhum momento transigi com a nobreza do cargo; escapei de juízos temerários, tomando cautelas para desembaraçar-me das influências e preferências determinantes de uma decisão; e, se alguma vez, inadvertidamente, pequei contra a lei, vai-me a certeza de que o fiz para distribuir bondade e benevolência”.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo