Fora da Faria

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O mercado das cervejas e os mitos sobre a geração Z

Se, no Brasil, todos tivessem a mesma renda e a mesma formação, talvez (e só o talvez) pudéssemos falar em marcadores homogêneos

O mercado das cervejas e os mitos sobre a geração Z
O mercado das cervejas e os mitos sobre a geração Z
(Foto: iStock)
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Muitas análises sobre o comportamento de consumo costumam partir de verdades inabaláveis. Um dado isolado está sempre pronto para ser projetado sobre milhões de pessoas, sem respeitar as características de regionais – mesmo que estas regiões signifiquem um país com mais de 200 milhões de habitantes. O novo alvo favorito das simplificações é a Geração Z. Pintada, por exemplo, como o vetor de uma súbita obsessão com a saúde.

Já repeti e volto a insistir: há uma perigosa mania de generalizar quando o assunto são gerações. Tratar a Geração Z como um bloco homogêneo, global e idêntico é apenas mais uma das cantilenas com que tentam explicar o mundo em poucas linhas e colocar uma camisa de força nos acontecimentos. Jovens chineses não são iguais a jovens brasileiros, assim como indianos, americanos e franceses vivem em universos culturais distintos. Comportamento é atravessado por fatores locais, históricos e, sobretudo, de classe social.

Se, no Brasil, todos tivessem a mesma renda e a mesma formação, talvez (e só o talvez) pudéssemos falar em marcadores homogêneos. É um erro estabelecer o comportamento de uma minoria como exemplo do todo. Um país desigual como o Brasil não pode ser visto por essa lente.

Se a geração Z está preocupada com a saúde, a curva da obesidade no Brasil deveria estar em queda. O Atlas Mundial da Obesidade indica, contudo, uma tendência bem diferente. Em 2003, 12% da população adulta brasileira era obesa. Em 2019 chegamos a 27% e em 2025 a balança subiu para 31%. A estimativa é a que, em 20 anos, metade da população brasileira seja obesa. Ou seja, a tal geração preocupada com a saúde está, na prática, engordando com o resto do país.

Outro argumento usado para reforçar o mito da “geração saudável” é a queda do consumo de álcool. Aqui, novamente, tentam importar conclusões de fora para o Brasil. Há quem sustente que a Geração Z bebe menos cerveja e que isso ameaça o mercado brasileiro. Como detalhei em uma coluna anterior, discordo. A venda de cerveja depende muito mais de clima e renda. Se há calor e a renda aumenta, o consumo é maior. E o mercado brasileiro ainda não chegou onde pode chegar. No Brasil, o consumo per capita é de cerca de 70 litros. No Sudeste, mais rico, está ao redor de 80 litros. Onde há mais dinheiro, há mais cerveja na mesa.

Nos EUA, cervejarias estão perdendo valor na bolsa. Os fabricantes de produtos com nicotina, contudo, estão no caminho inverso. A narrativa fácil é a de que os jovens estariam mais conscientes dos malefícios do álcool. Mas se é consciência que move o consumo, como explicar a explosão da nicotina?

A indústria tabagista fisgou os jovens com um novo conceito: a nicotina sem fogo. O argumento de que os vapes reduzem a vontade de fumar e controlam parte dos malefícios do cigarro são plausíveis. Mas as decisões de consumo não se resumem a laudos médicos. As embalagens desses dispositivos são modernas e coloridas, lembram pastilhas. Até eu, que não fumo e nem tenho nenhum interesse em nicotina, queria ter uma.

As cervejarias globais, por sua vez, estão focadas em manter os produtos nos mesmos rótulos e em mesmos sabores. Seus produtos sucedâneos não são cervejas: são outras bebidas, as chamadas bebidas mistas, que aproveitam seus canais de distribuição. Mas ainda é a cerveja, porém, a bebida alcoólica mais consumida no planeta. O dilema das cervejarias passa menos pelas ‘novidades’ e mais por olhar para seus demônios e entender onde estão falhando quando se fala na percepção da categoria.

O risco de seguir os “visionários de quintal” é justamente esse: transformar palpites em verdades e empurrar negócios para becos sem saída. Nenhuma geração, nenhum grupo social, é uma coisa só. As contradições são parte da vida. Há quem cuide da saúde engordando. Quem defenda o meio ambiente, mas recuse a sacola retornável. Isso não é um traço da Geração Z. É apenas a boa e velha condição humana.

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