Ligia Bahia

Médica, professora titular da UFRJ, coordenadora do Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento da Saúde

Opinião

assine e leia

Sob a mira da direita

Pode demorar, mas agentes do governo federal negacionista ainda responderão pela omissão de estratégias eficazes de controle da Covid–19

Sob a mira da direita
Sob a mira da direita
Robert F. Kennedy Jr. Foto: Josh Edelso/AFP
Apoie Siga-nos no

Alegações falsas e abordagens incorretas sobre saúde pública têm sido um elemento estratégico para governos autoritários e supremacistas.

Robert F. Kennedy Jr., secretário do Departamento de Saúde e Serviços Humanos do governo Trump, vem impondo políticas que ignoram evidências científicas e apelam para o medo.

Suas objeções a vacinas e fluoretação da água e demissões em órgãos de pesquisa e monitoramento de doenças evocam, inicialmente, retrocessos passageiros, acidentes históricos.

De fato, quando contextualizadas por ideários individualistas e racistas, as tentativas de substituição das melhores evidências científicas por crenças charlatãs ganham tração. Atmosferas democráticas favorecem soluções coletivas para a saúde. Mas interpelações sobre a ciência têm um curso mais longo do que o da substituição de governantes.

No Brasil, apesar das polêmicas durante a pandemia e dos atuais estudos que relatam efeitos colaterais e inconclusivos, o uso da ozonoterapia foi avalizado, no fim de agosto de 2025, pelo Conselho Federal de Medicina. Portanto, é necessário compreender com mais acurácia os fundamentos da guerra contra as bases populacionais da saúde pública.

A rejeição ao “Estado-babá” e as supostas infrações ao livre arbítrio trazem consigo a eliminação de intervenções que proporcionam incentivos e desincentivos ou estruturam ambientes comerciais, construídos ou informativos que estimulam opções mais saudáveis.

Programas direcionados aos fatores sociais e ambientais são imprescindíveis para a saúde. Marketing das indústrias, poluição do ar, oferta e disposição de produtos em supermercados, rotulagem falsa ou enganosa das embalagens de alimentos e bebidas e fabricação de produtos de tabaco viciantes, álcool e alimentos ricos em açúcar, sal e gorduras extrapolam o âmbito das escolhas individuais.

Indivíduos, isoladamente, não podem melhorar a qualidade do ar que respiram, controlar o nível de nicotina nos cigarros ou alterar os ingredientes da maioria dos alimentos nas prateleiras dos supermercados.

Políticas públicas e regulamentos são cruciais tanto para a redução de riscos à saúde quanto para evitar a falácia que atribui às pessoas a culpa por suas doenças. São os determinantes econômicos, sociais, ambientais e comerciais que promovem estilos de vida pouco saudáveis.

Na agenda de ações imprescindíveis para a saúde constam vacinas, controle e restrição da comercialização do tabaco, alimentos ultraprocessados, acesso a programas de perda de peso, incluindo uso de medicamentos eficazes, ar limpo, áreas verdes, infraestrutura para caminhadas e ciclismo e redução nas desigualdades para a aquisição de alimentos saudáveis. O negacionismo científico não deve ser interpretado tão somente como nuvem passageira.

No mês passado, o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) foi palco de um tiroteio. O atirador, que atribuía à vacina contra a Covid–19 o surgimento de depressão, efetuou dezenas de disparos que atingiram pelo menos quatro edifícios do campus e mataram um policial.

RKJ lamentou a morte, mas foi acusado de incentivar hostilidades contra a agência estatal. Informações dúbias, imprecisas e falsas impedem o fortalecimento de instituições de saúde pública, que possam contrapor-se efetivamente aos riscos à saúde.

Neste momento, no qual o País julga crimes contra a democracia, é importante recordar as atrocidades cometidas durante a pandemia. Precisamos apurar responsabilidades, punir e reparar as mais de 700 mil mortes.

O ex-ministro da Saúde Eduardo ­Pazuello, que ocupou a pasta entre 2020 e 2021, um dos candidatos mais bem votados nas eleições em 2022, exercendo mandato de deputado federal pelo Partido Liberal, mentiu descaradamente durante a CPI da Pandemia.

Ele afirmou que discursos, gestos e recomendações para o uso de cloroquina do ex-presidente Bolsonaro não influenciaram as políticas públicas.

Pode demorar, mas em conjunturas mais favoráveis à democracia, à ciência e à igualdade, agentes do governo federal negacionista responderão pela omissão de estratégias eficazes de controle da Covid–19.

“Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça.” Para não esquecer que, sem democracia, a saúde pública não tem vez. •

Publicado na edição n° 1378 de CartaCapital, em 10 de setembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sob a mira da direita’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo