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Congresso apresenta mais de um projeto por dia em meio a comoção pós-Felca
Propostas vão de novos tipos penais à criação de um Estatuto Digital, mas especialistas alertam para viés punitivista e avanço religioso sobre políticas públicas


No momento em que o Estatuto da Criança e do Adolescente completa 35 anos, o Congresso volta a discutir projetos de lei sobre a juventude. Desta vez, o foco é a proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital, com propostas de modificação do próprio ECA para endurecer punições e instituir novos tipos penais, como a adultização infantil.
O debate ganhou força após a viralização de um vídeo do youtuber Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, que mostra como os algoritmos das redes sociais impulsionam conteúdos que sexualizam menores de idade.
Felca também expôs perfis que divulgam imagens de menores de idade em troca de engajamento. É o caso do influenciador Hytalo Santos e seu marido, Israel Nata Vicente, que acabaram presos no dia 15 de agosto em Carapicuíba (SP) sob acusação de tráfico humano e exploração sexual infantil.
O debate sobre adultização rapidamente extrapolou as redes. Conforme o levantamento da Plataforma Religião e Poder, do ISER, que monitora propostas em tramitação no Congresso envolvendo temas religiosos ou questões éticas relacionadas à fé, foram apresentados ao menos 75 PLs sobre direitos das crianças e adolescentes nas três semanas seguintes à publicação do vídeo de Felca — mais de 3 projetos por dia. Dessas iniciativas, 48 versam sobre proteção no ambiente digital, 32 propõem alterações no ECA e 23 citam o termo adultização na ementa.
Os principais projetos
Uma das principais iniciativas é o PL 4030/2025, apresentado pelo deputado federal evangélico Messias Donato (Republicanos-ES) e outros nove coautores. O projeto propõe alterar o Código Penal e o ECA para tipificar como crime a adultização e erotização digital.
Caso esse PL seja aprovado, o ECA receberia a adição do seguinte artigo: “Art. 241-F. Expor, submeter, induzir, produzir, compartilhar, divulgar ou permitir a divulgação de conteúdo digital que promova a adultização, erotização, hipersexualização ou representação sexual inadequada à faixa etária de criança ou adolescente, ainda que sem nudez explícita, com finalidade de exploração, obtenção de vantagem econômica, engajamento em redes sociais ou outra forma de manipulação. Pena: reclusão de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa”.
Já o PL 4062/2025, de autoria da deputada federal católica Renata Abreu (Podemos-SP), propõe a criação do Estatuto da Proteção da Criança na Era Digital de forma a complementar o ECA e a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados).
O projeto busca obrigar as plataformas digitais a implementar medidas de verificação etária a fim de reduzir a exposição de crianças e adolescentes a conteúdos considerados nocivos. As plataformas que descumprissem essa lei estariam sujeitas a multas e até mesmo bloqueio de acesso em território nacional.
Há também o PL 3.924/2025, da deputada federal evangélica Dayany Bittencourt (União-CE), que propõe instituir a Lei Felca para endurecer penas de crimes já existentes no ECA e submeter a controle parental o acesso de crianças e adolescentes às redes sociais.
O próprio Felca chegou a ser convidado para ir até a Câmara para participar de uma audiência pública sobre adultização e sexualização de crianças nas redes sociais, mas recusou o convite por não querer ter seu nome associado a algum partido ou “lado” político.
Para além dos novos PLs apresentados, o Congresso também deu andamento a iniciativas já existentes na esteira do debate sobre adultização.
É o caso do PL 2628/2022, de autoria do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), cuja identidade religiosa não foi identificada, que estabelece regras para serviços de tecnologia da informação que possam ser acessados por crianças e adolescentes. A matéria foi aprovada com emendas pelo plenário da Câmara dos Deputados em 20 de agosto e pelo Senado no dia 27 do mesmo mês e agora aguarda sanção presidencial. A matéria foi aprovada com emendas pelo plenário da Câmara dos Deputados em 20 de agosto e pelo Senado no dia 27 do mesmo mês e agora aguarda sanção presidencial.
Também no dia 20, o presidente da Câmara dos Deputados Hugo Motta (Republicanos-PB) determinou a criação de um grupo de trabalho para análise das propostas legislativas acerca da proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital. O GT ainda não se reuniu.
O debate não se limita ao Legislativo. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) aprovou, em dezembro de 2024, a Resolução nº 257, que estabelece diretrizes da Política Nacional de Proteção no Ambiente Digital. Para a secretária nacional Maria do Pilar Almeida, o fenômeno da adultização exige uma resposta ampla:
“Não pode ser enfrentado de forma isolada. É preciso articular regulação digital, políticas públicas consistentes e o compromisso efetivo das famílias e da sociedade”, afirmou, em audiência pública em 26 de agosto. “Só assim será possível garantir que crianças vivam plenamente suas infâncias, livres da exploração e da violência.”
O peso da religião e o viés punitivista
Desde o início da atual legislatura, foram identificados 1.090 PLs sobre direitos da infância e adolescência protocolados na Câmara e no Senado. A cifra equivale a mais de um projeto por dia e corresponde a 6,9% do total de PLs apresentados no período.
O levantamento da Plataforma Religião e Poder indica ainda que o debate político sobre infância e adolescência passou a ser dominado pela direita nos últimos anos. De todos os PLs sobre juventude apresentados na atual da legislatura, 582 foram apresentados por parlamentares de partidos de direita, contra 206 de esquerda e 200 de centro.
Promulgado em 13 de julho de 1990, o ECA passou a reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e representou um marco no processo de redemocratização do país.
Além disso, muitos projetos sobre infância e adolescência apresentam viés punitivista. Ao menos 256 PLs, ou 23% do total analisado, propõem alterações no ECA, no Código Penal e na Lei de Execução Penal para agravar as penas previstas para crimes já existentes e definir novos tipos penais, como a adultização e erotização de menores.
Uma análise temática dos PLs sobre infância e juventude revela que a educação é o eixo prioritário de atuação dos parlamentares. Ao menos 346 projetos buscam influenciar a formação de crianças e adolescentes com mudanças no currículo e criação de novas disciplinas, como educação financeira e empreendedorismo. Parte das iniciativas versa sobre escolas cívico-militares.
O segundo principal tema dos projetos sobre juventude diz respeito à violência, somando 183 iniciativas. Há um foco no agravamento de penas para maus-tratos e crimes sexuais contra crianças e adolescentes, bem como na proibição de que condenados por esses crimes ocupem cargos públicos. Parte dos projetos cria políticas de acolhimento para órfãos do feminicídio.
Os PLs sobre proteção de crianças e adolescentes no meio digital vêm em terceiro lugar, totalizando 120 propostas, das quais mais de um terço foram apresentadas desde a publicação do vídeo de Felca. Antes mesmo do atual debate sobre adultização, já havia propostas para promover a educação digital e restringir o uso de imagens de crianças e adolescentes em ferramentas de inteligência artificial. Outras iniciativas procuravam proibir o uso de equipamentos eletrônicos nas escolas – é o caso do PL 4932/2024, de autoria do deputado federal católico Alceu Moreira (MDB-RS), que foi aprovado e deu origem à Lei nº 15.100, de 13 de janeiro de 2025.
Um número considerável de PLs (64) versa sobre segurança escolar, propondo a instalação de câmeras de segurança, detectores de metais e vigilância armada em instituições de ensino. Muitas dessas iniciativas foram apresentadas após uma onda de ataques violentos a escolas com grande repercussão nos meses de março e abril de 2023 em cidades como São Paulo (SP), Blumenau (SC), Farias Brito (CE), Manaus (AM) e Santa Tereza (GO).
Os “picos” de apresentação de PLs sobre proteção digital e segurança escolar demonstram uma tendência dos parlamentares de formular propostas legislativas em resposta a debates quentes nas redes sociais e na mídia no lugar de construir iniciativas a partir de promessas de campanha.
Nesse sentido, há também projetos com viés antigênero (33) que nascem a partir de pânicos morais. São iniciativas que buscam censurar a chamada linguagem neutra e debates sobre gênero em sala de aula, assim como impedir a participação de crianças e adolescentes em Paradas do Orgulho LGBTQIA+ e proibir serviços de saúde voltados para pessoas trans menores de idade.
Também há PLs que buscam censurar obras culturais (18), como shows e livros, sob o pretexto de impedir a exposição de crianças e adolescentes a conteúdos considerados inapropriados, com referências a sexo e drogas, por exemplo.
Outros temas de destaque entre os PLs analisados no levantamento envolvem direitos sociais como saúde (83), alimentação (62) e transporte (13). Também há iniciativas a respeito da proteção de minorias (80), como jovens indígenas e quilombolas ou pessoas com deficiência e autismo.
Um número reduzido de PLs trata de adoção e outros assuntos relacionados à família (32). Também há iniciativas sobre responsabilidades de órgãos do Estado (18) e regras de internação de crianças e adolescentes em conflito com a lei (13). Os demais projetos versam sobre publicidade e meios de comunicação (8) e outros temas (12).
O legado do ECA
Promulgado em 13 de julho de 1990, em meio à redemocratização, o ECA foi um divisor de águas ao reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. Três décadas e meia depois, seu espírito protetivo é constantemente tensionado por novas disputas políticas, tecnológicas e culturais.
Para a equipe do ISER, é preciso reafirmar esse marco histórico: “O ECA foi fruto da luta de movimentos sociais e da sociedade civil organizada, que desde a ditadura, já se organizavam pela construção de uma nova política protetiva e de cuidado para crianças e adolescentes no Brasil”, afirmam os pesquisadores Ane Rocha, Lucas Matos e Késsia Gomes.
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