Diálogos da Fé
Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões
Diálogos da Fé
A lei precisa valer para todos
Do caso Lula aos presos sem julgamento, a Justiça no Brasil não atende aos princípios da decência


O clima do noticiário destes dias me instigou muito a pensar para além do que tem sido espetacularizado em relação à “Justiça no Brasil”. Nesta reflexão, fui provocada pela dimensão política que, no presente, alimenta o Poder Judiciário, seus julgamentos espetaculares, com procuradores e juízes heróis, e o torna seletivo. E pensei no histórico tratamento diferenciado, minorado, nas causas judiciárias, imposto a pobres, negros, jovens, moradores de periferia, desempregados, àqueles com baixa escolaridade ou com orientação sexual homoafetiva.
Sem esquecer das situações controversas como “foro privilegiado”, celas especiais, prisão especial provisória, a pergunta que não quer calar é: que Justiça é esta?
Não vou entrar no mérito do julgamento do recurso do ex-presidente Lula, analisado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região em tempo recorde. Não posso deixar, porém, de relacionar este fato aos dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2017: do total de detentos no Brasil, mais de um terço está preso sem ter sido julgado em primeira instância (em alguns estados, o percentual chega a 80%).
O mesmo CNJ divulgou, em 2016, que 33% dos condenados cumpriram pena em presídios e ainda assim permanecem atrás das grades. As pesquisas mostram que, entre os presos, 56% são jovens, 67% são negros, 53% têm o ensino fundamental incompleto.
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Vale ainda recordar os casos nos âmbitos cível e trabalhista parados por anos e anos nos fóruns e tribunais, impedindo muitas vezes o acesso a bens, heranças, verbas trabalhistas, entre outros, que fariam diferença no orçamento de muitas famílias.
Importa também lembrar as altas taxas cobradas para o encaminhamento destes processos e da verdadeira saga que muita gente é obrigada a viver nos corredores dos órgãos públicos…
Pensei, então, sobre como questionar esta fragilidade na concepção de justiça no nosso País, numa perspectiva cristã, por isto compartilho minhas ideias neste espaço.
No contexto protestante/evangélico, o lugar do texto sagrado, a Bíblia, é fundamental na orientação da vida. Martinho Lutero escreve: “…Todas as Escrituras tinham para mim outro aspecto, perscrutava-as para ver tudo quanto ensinam sobre a justiça de Deus”. É muito significativo que a noção de “justiça” permeie as páginas da Bíblia tanto nas narrativas quanto nos textos doutrinários, nas poesias e nas porções didáticas. É um olhar sobre o Divino que prima pela justiça e está sempre ao lado de quem é humilde, inocente e busca o que é direito.
Não sou teóloga, mas aprendi muito no convívio com professores da Faculdade de Teologia da UMESP, onde atuei por 13 anos. Aprendi muito com o professor Tércio Siqueira, do curso de Antigo Testamento: É desta parte da Bíblia que se origina a noção de justiça que permeia o Livro Sagrado.
A Bíblia, como um todo, afirma a importância das exigências pela justiça social e política, e pelos direitos humanos, mas reinterpreta os objetivos da “justiça”, para dar-lhe um novo significado.
Experiências como a Páscoa (a libertação dos escravos judeus no Egito) eram base para um critério da justiça que não era tão só a lei escrita por seres humanos, mas a oportunidade de uma nova vida. Na parte eminentemente poética da Bíblia, os Salmos, “justiça” e “direito” estão sempre relacionadas aos termos “amor”, “bondade”, “fé/fidelidade”, “paz” e “decência”, entre outras
O professor Siqueira me ensinou um ditado latino que espelha bem a justiça “dos homens”: “Dura é a lei, mas é a lei”. Ele alertou que é fácil ver neste ditado a inflexibilidade e a dureza da lei e de sua aplicação. Mas não é assim a justiça, nas bases da fé cristã, a partir dos escritos da Bíblia.
Bondade, decência e paz devem alimentar a justiça e aplicação da lei. Por isso, há indicações como: “Não sereis parciais no juízo; ouvireis assim o pequeno como o grande…” (Deuteronômio 1.17);
“Julgou a causa do aflito e do necessitado? Então lhe sucedeu bem” (Jeremias 22.16);
“… Falai a verdade cada um com o seu próximo, executai juízo nas vossas portas segundo a verdade em favor da paz” (Zacarias 8.16);
“Procurai o Senhor, todos vós, os humildes da terra, que praticais a Justiça por Ele estabelecida” (Sofonias 2.3).
Por isso, Jesus de Nazaré fala sobre a justiça de Deus como diferente e superior à “justiça dos homens” (parcial e injusta): “Buscai primeiro o Reino de Deus e sua justiça, e todas as outras coisas lhes serão acrescentadas” (Mateus 6.33).
Nesse sentido, quando há justiça, há paz e todas as consequências boas que elas podem trazer: sustento, trabalho, lazer, estudo, saúde, vida plena.
Foi nestas bases que Jesus contou a história de como uma viúva confrontou um juiz iníquo (sim, eles já atuavam naquele tempo) e venceu sua causa. Com isto, ele ensina que quando insistimos no cumprimento da justiça, confrontando quem tem poder sobre ela e a nega, alcançamos o que é direito. Nunca desistir.
O título de um filme bastante divulgado recentemente dizia “A lei é para todos”. Não precisamos ser analistas de discurso para afirmar que esta é uma frase de ficção e efeito. Basta olhar a vida no noticiário de cada dia. Quem sabe, uma das nossas inspirações para torná-la concreta possa ser a proposta bíblica de construir a justiça com base no amor, na misericórdia, na paz e na decência. É princípio básico de humanidade que não está preso a doutrinas. Vale, portanto, para religiosos e não religiosos, cristãos e não cristãos.
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