Memória
Sobre ser filha do Mino
Arrivederci, pai querido


“Ah, mas como é ser filha de um cara tão brilhante como o Mino?” Incontáveis vezes ouvi essa pergunta ao longo da vida. A resposta vinha fácil, porque eu sempre tive muito orgulho de ser filha do maior jornalista do Brasil. Ele, juntamente com minha mãe, uma das minhas primeiras grandes referências de caráter e retidão. Como criador de tantas publicações, sempre será sinônimo de jornalismo honesto. Centro das atenções de tantos embates, com suas opiniões fortes e polêmicas, briguento mais para compor uma persona, mas muito doce na intimidade, sempre a bordo de uma taça de vinho.
Ainda menina, durante algum jantar no Gigetto com os amigos artistas, divertidos, ou mais tarde vendo-o capitanear jantares com intelectuais no velho Massimo da Alameda Santos, percebi que o palco era dele e a mim cabiam os aplausos. O cara era genial mesmo – e eu era a primeira a tieta-lo, embevecida. Para mim, ele era de longe o melhor pintor, o melhor tenista, o melhor contador de piadas, o melhor chef, sempre o mais elegante nos seus tweeds e ternos impecavelmente cortados pelo Mestre Tonin. Com o aroma de Penhaligon’s impregnando suas finíssimas gravatas Marinella, feitas à mão por artesãos napolitanos, e seus lenços cashmere. Um verdadeiro grand seigneur. Meu pai herói, fã de Antonio Gramsci e Hannah Arendt. E como eles pessimista no pensamento e otimista na ação.
Com ele trabalhei duas vezes, primeiro na Senhor, depois na Istoé. No meio tempo passei pela Folha, depois em assessoria de imprensa, até que em 2001 aceitei o convite que ele me fez para me juntar, no papel de publisher, ao projeto da CartaCapital, que naquele momento viraria semanal. “Isso aqui agora é nosso e precisamos de você para trazer a grana, já que eu não entendo nada de administração e números”, disse ele, que, de fato, nunca aceitou o papel de patrão. Naquela altura, abracei a missão de levar adiante o que meu pai considerou seu melhor projeto editorial. A parceria foi em grande medida bem sucedida também graças a Mara Lúcia, hoje nossa sócia e fiel escudeira do Mino há quase 40 anos, Sergio Lírio, nosso brilhante redator-chefe, além do professor Luiz Gonzaga Belluzzo, suporte permanente e fundamental.
Apesar do grande desafio que é tocar uma marca com ideais progressistas num país conservador e com uma mídia de sentido único, acho que fizemos uma boa dupla – ainda que entre tapas e beijos. Sim, porque a uma certa altura eu me livrei (médio) das questões freudianas, e passei a peitá-lo aqui e ali. Eu relutava em me igualar a ele no temperamento, mas sempre fomos muito parecidos, especialmente no sangue quente. Pena não ter herdado sua energia e genialidade. Para quem presenciava, nossos embates pareciam mais uma briga de trattoria napolitana: de vez em quando, um mandava o outro para o inferno em alto e bom som. Mas no outro dia estávamos lá, nos apoiando, prontos a levar nossa Armata Brancaleone adiante.
Gianni, Manuela e Mino Carta (Arquivo pessoal)
Ah, como me aborrecia quando, pela enésima vez, ele escrevia que o Brasil é o país da Casa Grande e da Senzala, que isso aqui não tem conserto, que nossa elite é um horror. Eu argumentava, “troca o disco, papai”, mas ele, impaciente, explicava que certas coisas precisam mesmo ser repetidas ad nauseaum para serem devidamente entendidas. Sábio Mino. Infelizmente, ele tinha razão, o Brasil é muito atrasado e ele não viu as coisas melhorarem de verdade.
CartaCapital, que no ano passado completou 30 anos, foi um sonho do meu pai e passou a ser também meu no momento em que entendi o propósito original da empreitada, ser um veículo que de alguma forma pretende apontar as tantas mazelas brasileiras, colocando o dedo nas feridas que precisam ser cutucadas e, quem sabe, influir nos rumos do País. Levar esse projeto adiante, sem pretender substituir o meu pai, mas tentando manter a qualidade e coerência que sempre marcaram seu trabalho, com seu desassombro e sem perder a capacidade de se indignar com as injustiças, é a melhor maneira de honrar o seu legado.
No último ano, meu pai travou sua última batalha ao lutar pela vida, na esperança de chegar à sua festa de 100 anos. Mais uma vez, foi valente e destemido. Aguentou o quanto pôde. Espero que, na hora do juízo final, ele tenha conseguido olhar a morte nos olhos, como sempre disse que queria. E que encontre a esposa amada, Angélica, a velha e querida avó Eugenia e o filho perdido, Gianni, reunidos na sua inesquecível casa de San Remo, a bordo de um prato de tomates temperados com bom azeite, manjericão abundante e dois dentes de alho (sem alma, naturalmente). Tudo regado a Pigato. Ao fundo, se ouvirá o barulho suave do Mediterrâneo, o perfume das oliveiras e dos pinheiros-marítimos e as músicas da Mina, do Fred Bongusto e do Peppino. Arrivederci, pai querido. Que você reencontre suas mais preciosas memórias na sua nova jornada.
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