Daniel Camargos

Repórter especial na 'Repórter Brasil', venceu diversos prêmios por reportagens, entre eles o Vladimir Herzog. Dirigiu o documentário 'Relatos de um correspondente da guerra na Amazônia' e participou da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center.

Daniel Camargos

Quem pagou o golpe ainda colhe lucros

Enquanto Bolsonaro é julgado no STF, setores do agronegócio que financiaram o golpismo seguem impunes e premiados com bilhões do Estado

Quem pagou o golpe ainda colhe lucros
Quem pagou o golpe ainda colhe lucros
A maior parte dos apoiadores financeiros da campanha de Bolsonaro são ligados ao agronegócio. Foto: Alan Santos/PR
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Há quem sorria, há quem apenas respire mais fundo, aliviado. Ver o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no banco dos réus do Supremo Tribunal Federal é, no mínimo, um sinal de que algo no País ainda resiste ao cinismo. 

Mas o que está em jogo vai além dele. Acusado de tentativa de golpe, conspiração e organização criminosa, Bolsonaro começa a prestar contas, enquanto muitos dos que financiaram e incentivaram a intentona golpista seguem ilesos e lucrando com isenções fiscais, entre os quais setores do agronegócio.

A delação de Mauro Cid revelou que parte do dinheiro destinado ao plano Punhal Verde e Amarelo (que incluía a trama para assassinar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes) veio de empresários ligados ao agronegócio. 

Em seu depoimento à Polícia Federal, Cid relatou ter recebido 100 mil reais em espécie do general Braga Netto, que informou que os recursos vinham de “alguém do agro”. Em áudios obtidos pela PF, o próprio Cid menciona “um cara do agro” pressionando por uma “medida mais pesada” que envolvesse uso de força.

O plano, encontrado em um dispositivo do general da reserva Mario Fernandes, então número dois da Secretaria-Geral da Presidência, detalhava ações de caráter terrorista: sequestros, execuções, explosivos e envenenamentos. 

Havia previsão de uso de pistolas, fuzis, granadas e até lançadores de foguetes antitanque. Para Lula, o texto previa envenenamento ou colapso orgânico induzido. Para Moraes, explosivos em eventos públicos. 

Para a PF ,tratava-se de um planejamento criminoso de altíssimo grau de letalidade, concebido dentro do governo, com apoio logístico, político e financeiro de setores influentes, incluindo o agronegócio.

Vale lembrar que um relatório do observatório De Olho nos Ruralistas também identificou 142 empresários do agro envolvidos nos protestos e bloqueios antidemocráticos de 2022 e 2023. A maioria atuava no Mato Grosso, maior produtor de soja do Brasil. Famílias tradicionais e entidades como a Aprosoja, principal representante do setor, compuseram as engrenagens de um projeto de poder que apostou contra a democracia.

Mas o agro não financiou apenas a tentativa de golpe recente. É o mesmo agro que há décadas se sustenta em privilégios bilionários, violência e impunidade.

Na semana passada, uma sentença revisitou uma das páginas mais brutais da história recente brasileira. A Justiça do Trabalho de Redenção, no Pará, condenou a Volkswagen do Brasil a pagar 165 milhões de reais em indenizações por submeter trabalhadores a condições análogas à escravidão entre 1974 e 1986, na Fazenda Vale do Rio Cristalino, em Santana do Araguaia. 

O caso havia sido denunciado ainda na década de 80, mas só agora teve um desfecho judicial. A decisão também obriga a empresa a reconhecer publicamente sua responsabilidade, pedir desculpas e adotar medidas de prevenção contra práticas semelhantes em suas cadeias produtivas.

Trabalhadores que foram vítimas relataram à Justiça o regime imposto na fazenda: dormiam em barracos de lona ou sapê, enfrentavam jornadas exaustivas e sofriam com malária e fome. 

Muitos haviam sido aliciados com falsas promessas e, ao chegarem ao local, eram forçados a comprar equipamentos e comida no próprio barracão da fazenda, gerando dívidas impagáveis. Quem tentava fugir era perseguido por capangas armados.

“Quando tava na Volks não tinha dia não, a gente trabalhava até de domingo. Trabalhava de foice e morava no barracão de lona. Quando tinha chuva de vento, arrancava tudo”, contou Raul Batista de Souza à Repórter Brasil

O projeto da Volks no Pará foi financiado com recursos públicos, concebido como símbolo da modernização agrícola durante os anos de chumbo da ditadura. Enquanto os trabalhadores viviam sob espingardas e malária, a sede da fazenda ostentava piscina e clube para funcionários administrativos. O Estado concedia isenções fiscais e metas anuais de desmatamento. A Volkswagen, mesmo diante de denúncias e flagrantes, negou responsabilidade por anos. 

Na mesma comarca, de Redenção, outra ferida recente mostra que a violência fundiária não ficou no passado. Em 2017, na Fazenda Santa Lúcia, no município de Pau D’Arco (PA), dez trabalhadores rurais foram assassinados por policiais civis e militares durante uma operação de reintegração de posse. 

A ação foi descrita por sobreviventes como uma emboscada para matar. O principal deles, Fernando Araújo, escapou se fingindo de morto. Em 2021, foi executado com um tiro na nuca.

Apesar da dor, as famílias permaneceram na terra. Plantaram hortas, viveram sob drones e ameaças e chegaram a ser envenenadas por aviões pulverizadores de agrotóxicos. Na semana passada, a Justiça concedeu ao Incra a posse da área. A Fazenda Santa Lúcia será um assentamento. 

A história do massacre, da impunidade e da resistência está no documentário Pau D’Arco dirigido por Ana Aranha. O filme estreou no festival É Tudo Verdade e foi aplaudido de pé por muitos minutos. Em abril, foi escolhido como o melhor longa-metragem pelo júri da Mostra Ecofalante e, em 17 de setembro, será exibido no Festival de Brasília.

É um filme potente, sensível e necessário, que mostra como a impunidade no campo segue sendo uma chaga da democracia brasileira. Uma amostra do que é o documentário pode ser ouvida no episódio Testemunhas, do podcast Rádio Novelo Apresenta. 

Recentemente, recebi uma notícia que veio do Mato Grosso. O acampamento Boa Esperança foi transformado em assentamento após vinte anos de espera. Foram décadas de incêndios criminosos, tiros e destruição de barracos. Em 2015, milicianos atearam fogo em 80 casas. Em 2020, novos ataques queimaram quase toda a área. Ainda assim, cem famílias resistiram.

Estive lá e vi de perto a força da resistência dos acampados, que replantavam suas roças de feijão, mandioca, milho e abóboras após os ataques.  Em junho, o Incra entregou finalmente os contratos de concessão de uso. Transformaram as cinzas em colheita, como contei nessa reportagem.

A Fazenda da Volkswagen, o Massacre de Pau D’Arco e os ataques ao Boa Esperança revelam a persistência de um modelo: terra concentrada, violência contra trabalhadores e benevolência do Estado com quem mais tem. 

O estudo “Agro, um bom negócio para o Brasil?”, produzido pela Associação Brasileira de Reforma Agrária e pela Fundação Friedrich Ebert Brasil, mostra como esse padrão se sustenta até hoje por meio de renúncias fiscais, crédito subsidiado e uma legislação moldada pelos grandes. 

O agro exportou como nunca somando quase 158 bilhões de dólares em 2023, mas deixou de pagar 60 bilhões de reais em impostos. Enquanto isso, o arroz, o feijão e a mandioca somem das lavouras, e 21 milhões de brasileiros passam fome. Entre 2010 e 2022, o setor já havia recebido R$ 580 bilhões em crédito com juros subsidiados, valor superior ao orçamento federal da saúde em 2023

Não se trata de exceção. O agro que financiou caminhões para quartéis e bancou teorias conspiratórias é o mesmo que domina o crédito público e opera no Congresso como trincheira.

O julgamento de Bolsonaro pode marcar o início de um ajuste de contas com o golpismo, mas não pode terminar por aí. Enquanto quem executou está no banco dos réus, quem bancou continua no palanque. Se a democracia quer se proteger, precisará também punir seus financiadores.

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