Diálogos da Fé

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Sacrifício de animais: algumas reflexões

A tentativa de proibir tem sido cada vez mais frequente. Mas o que incomoda tanto? Qual a intenção não revelada?

O sacrifício é a condição para a continuidade da vida
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Em diversas Câmaras municipais e Assembleias Legislativas tramitaram projetos para proibir o sacrifício de animais em rituais e cultos religiosos. O Tribunal de Justiça de São Paulo, em decisão recente, derrubou por maioria absoluta uma lei do município de Cotia, que fixava multa de 1.504 reais a quem utilizasse, mutilasse ou sacrificasse animais em locais fechados e abertos com finalidade mística, iniciática, esotérica ou religiosa. No caso de empresas, a multa seria de 752 reais por animal, além da perda do alvará de funcionamento.

O alvo obviamente eram os povos de matriz africana, que incluem em suas práticas rituais de sacrifícios de várias espécies animais, como cabritos e carneiros, galinhas e outras aves. A lei foi considerada inconstitucional e revogada, mas seus efeitos ainda reverberam e alimentam toda sorte de perseguição e intolerância contras as religiões afro-brasileiras.

A Constituição Federal de 1988 deveria por si só assegurar o direito às práticas tradicionais do Candomblé, mas ainda requer alguns dispositivos que as regulamentem. Acreditávamos que o Estatuto da Igualdade Racial daria conta de inserir esses rituais na esfera das garantias constitucionais, mas a intolerância religiosa ainda se sobrepõe, especialmente aquela empreendida pelas bancadas evangélicas e por setores mais conservadores da sociedade.

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Talvez eu não seja suficientemente capaz de explicar e é bem provável que muitos não queiram ou não consigam entender, mas é necessário que se fale a respeito desse tema. Trata-se aqui de uma tentativa de desmistificar uma série de questões, esclarecer um sem-número de equívocos e descontruir os preconceitos em relação ao sacrifício de animais no Candomblé. Tentativa pretensiosa, é verdade. Então, lanço algumas informações que podem abrir um debate e nos instigar a refletir sobre o assunto.

Primeiramente, deve-se admitir que seria impossível esgotar esse debate num breve artigo. Desta forma, proponho que, com base nos elementos aqui levantados, pensemos sobre o sacrifício e sua função estruturante no Candomblé. Não vai aqui nenhuma pretensão de mudar opiniões. Não há espaço para tantos argumentos e, ainda que houvesse, para quem não está aberto a ouvir não adianta explicar.

Sabemos que as religiões africanas também são vítimas do racismo e por isso sofrem com a discriminação e o preconceito. A intolerância religiosa é uma das faces do racismo. Nesse sentido, a matança de animais (e a não utilização de eufemismo é deliberada) é muitas vezes o pretexto para se destilar ódio e desrespeito em relação ao Candomblé, suas práticas e sua gente.

Recaem sobre os povos de terreiro acusações de maus tratos e crueldade com animais, o que é absolutamente infundado. O sacrifício de animais é uma condição para a subsistência e para a manutenção espiritual da comunidade. É uma prática que não está para ser modificada ou questionada, faz parte e pronto. Em outros termos, como ponto fundamental da fé configura-se como algo indiscutível. E não cabe ao Estado, à sociedade, muito menos a outras religiões, coloca-lo em dúvida ou determinar como deve ser conduzido. A regulamentação legal ou jurídica é para assegurar o direito à realização do ritual, não para submetê-lo à secularização.

Para se compreender o significado do sacrifício no culto aos orixás, é preciso entender o que é axé, ou seja, a força que assegura a existência dinâmica e que torna possível o processo vital. Axé é o poder de realização, o devir. No Candomblé, o sacrifício visa ampliar, acumular e distribuir o axé. O ritual não tem um sentido expiatório, pois em nossa religião não existe a noção de pecado, não havendo, portanto, o que expiar.

Por estar ligado simbolicamente à fertilidade, à concepção e ao nascimento, o sangue é detentor de axé. O sacrifício é a condição para a continuidade da vida, considerando, principalmente, que todo os seres vivos se alimentam.

Nós, humanos, estamos também inseridos no universo da cultura e por isso atribuímos significados específicos a nossas necessidades vitais. Portanto, inúmeras religiões conferem ao alimento e à alimentação um sentido sagrado. Judeus e muçulmanos, por exemplo, só consomem carnes de animais abatidos de acordo com suas liturgias e até os produtores se adaptaram a essa exigência.

Também no Candomblé, a carne que será consumida pelos iniciados deve ser sacralizada. São vetadas as carnes de animais que foram submetidos a algum tipo de sofrimento. Todas os atos públicos e festividades de um terreiro são precedidas de matança.

Nesses ritos, o sangue impregna de axé os assentamentos sagrados. Os animais são limpos e seus órgãos vitais são preparados, ofertados aos orixás e compartilhados em comunhão pelos fiéis. A carne será o alimento da comunidade na festa e no dia-a-dia. Como os terreiros de Candomblé normalmente se localizam em regiões carentes, o excedente muitas vezes é dividido com a vizinhança.

Como bem sabemos, a compreensão total desses ritos milenares só pode ser absorvida por meio da vivência e ao longo do tempo. Contudo, é fundamental que os olhares sejam expurgados do racismo e que essas pequenas informações sejam elementos que agucem a boa vontade para entender o diferente antes de julgá-lo.

Não precisa aceitar, mas tem de respeitar.

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