Mundo
Patrulha no quintal
Trump ameaça militarmente o subcontinente com uma nova versão da guerra às drogas e ao terror


No dia da posse, em 20 de janeiro, Donald Trump publicou uma ordem executiva na qual igualou cartéis de drogas a organizações terroristas internacionais. A medida abriu as portas para os Estados Unidos passarem a usar a força armada mais poderosa do mundo contra facções criminosas latino-americanas e contra governos da região acusados por Washington de ligação com esses grupos. Em tese, a medida não passava de uma resposta a traficantes. Mas, do ponto de vista de uma América Latina calejada por anos de Guerra Fria, soou à reedição escamoteada de uma política intervencionista que, em sua versão 2.0, pode ser dirigida pela Casa Branca de maneira seletiva e politizada contra seus desafetos, sob pretexto de combater a criminalidade transnacional.
A medida publicada em janeiro foi complementada sete meses mais tarde por uma diretriz secreta assinada por Trump, cuja existência só veio a público graças a uma reportagem do jornal The New York Times. Essa diretriz autoriza o Pentágono a realizar operações militares contra cartéis que a partir de agora sejam designados como organizações terroristas. Essas ações passaram a ser possíveis não apenas em águas internacionais, mas também em solo estrangeiro. Embora seja algo questionável do ponto de vista do direito, a regra institui, de fato e na prática, um poder autoatribuído pelos EUA para atacar o território de qualquer país que venha a ser acusado de ligação com o tráfico e, portanto, com o terrorismo.
O combate aos cartéis poderia justificar a invasão de territórios
A norma de janeiro fala em combate ao “terrorismo internacional”, “insurgência” e “métodos de guerra assimétrica” contra grupos que “desestabilizam países que têm importância para os interesses nacionais” norte-americanos. Esse tipo de formulação sobrepõe a mera criminalidade ao terrorismo. Além disso, fala abertamente em “guerra” contra os EUA e, por fim, trata a estabilidade de governos de países vizinhos como um assunto de preocupação legítima de Washington. O encadeamento dos termos e conceitos aponta, no horizonte, para a uma política militarizada, hostil e intrusiva, que começa a provocar reflexos na região.
Os primeiros oito cartéis foram mencionados nominalmente em fevereiro pelo Departamento de Estado: Tren de Aragua (TdA), Mara Salvatrucha (MS-13), Cartel de Sinaloa, Cartel de Jalisco Nueva Generación (CJNG), Cartel del Noreste (CDN), La Nueva Familia Michoacana (LNFM), Cartel de Golfo (CDG) e Carteles Unidos (CU). Todos foram designados como organizações terroristas internacionais, ou FTOs, na sigla em inglês. Em maio, foram adicionadas duas gangues haitianas, a Viv Ansanm e a Gran Grif. Finalmente, em julho, o cartel Los Soles foi incluído e, com isso, veio a associação política do presidente venezuelano, Nicolás Maduro, ao terrorismo internacional, o que abriu caminho para uma primeira ameaça militar aberta dos EUA.
O secretário de Estado norte-americano, Marco Rubio, postou a seguinte mensagem nas redes sociais: “Maduro NÃO é o presidente da Venezuela e seu regime NÃO é o governo legítimo. Maduro é o chefe do Cartel de Los Soles, uma organização narcoterrorista que tomou posse de um país. E ele está sendo indiciado por tráfico de drogas para os Estados Unidos”. No mês seguinte, o Departamento de Justiça dos EUA anunciou o aumento da recompensa, para 50 milhões de dólares, destinada a quem entregasse o presidente venezuelano às autoridades estadunidenses, e a porta-voz de Trump, Karoline Leavitt, ecoou a fala de Rubio, acrescentando que a Casa Branca agora pode vir a usar “todo seu poder” para tirar Maduro do cargo.
Pretexto. Combater os cartéis seria uma desculpa para invadir o México – Imagem: Gustavo Becerra/AFP
Na sequência, navios de guerra dos EUA foram enviados para o Caribe, perto da costa da Venezuela, o que fez disparar os rumores sobre uma invasão iminente. As embarcações, identificadas como destróieres da classe Arleigh Burke, capazes de disparar baterias de mísseis como aquelas empregadas na invasão do Iraque, em 2003, teriam, segundo especialistas, volume de fogo e pessoal militar suficientes para suplantar as defesas venezuelanas. Maduro respondeu com o anúncio da mobilização de 4,5 milhões de integrantes da Milícia Nacional Bolivariana. “Nenhum império vai tocar o solo sagrado da Venezuela, nem deveria tocar o solo sagrado da América do Sul”, disse Maduro, ecoando os tambores da guerra soados primeiro em Washington. A preocupação foi logo replicada pela presidente do México, Claudia Sheinbaum, que disse “não ao intervencionismo” e relembrou a importância dos princípios de “não intervenção e de resolução pacífica de controvérsias” entre os países.
A simples menção ao risco de uma invasão militar ao território de um país sul-americano, vizinho ao Brasil, representa uma nova página. Até então, Washington não ia além da aplicação de sanções e embargos, congelando ativos tanto de integrantes de governos estrangeiros quanto de empresas estatais, como no caso das companhias ligadas ao comércio de óleo venezuelano, principal produto da economia do país. Mandar tropas é outro capítulo, que lembra a invasão do Panamá, em 1989, para capturar o então presidente Manuel Noriega.
De lá para cá, os norte-americanos seguiram intervindo na região, sob o argumento de realizar uma “guerra às drogas”. Essa intervenção se dava, no entanto, por meio de instrumentos menos invasivos de seu arsenal, como no caso da robusta e antiga cooperação militar com a Colômbia, mas nunca, desde o fim da Guerra Fria, com o posicionamento de tropas, ensaios de cercos navais e ameaças explícitas de invasão, deposição e mudança de regime. O léxico da “guerra ao terror” foi definitivamente importado para a América Latina, e o que antes parecia exclusividade do Oriente Médio, como no caso do Iraque, e da Ásia, como nos casos do Afeganistão e do Paquistão, passou a ser possível também na vizinhança brasileira.
O léxico da “guerra ao terror” foi importado para a América Latina
A mentalidade da guerra às drogas não é nova em si mesma. Prova disso é o fato de o presidente do Equador, Daniel Noboa, ter declarado formalmente, em janeiro de 2024, a existência de um conflito civil no país contra 22 cartéis locais, com ramificações internacionais. Do ponto de vista do direito internacional, existe uma premissa legal que muda uma situação de violência armada, fazendo com que ela passe de mero enfrentamento da criminalidade para um “conflito armado não internacional”, chamado popularmente de guerra civil. Essa chave é a aplicação de um ramo do direito chamado Direito Internacional Humanitário ou Direito Internacional dos Conflitos Armados, muito menos garantista que o dos Direitos Humanos, pois permite um uso muito mais amplo e intenso das Forças Armadas, com perfil de operações bélicas, de fato. Foi isso que Noboa fez em 2024, mas, no caso do Equador, ainda era um presidente a declarar guerra civil no próprio país. A novidade, com as medidas de Trump, é os EUA fazerem esse tipo de declaração por meios enviesados contra governos estrangeiros.
No caso do Brasil, nenhuma facção criminosa foi incluída na lista de organizações terroristas. Mas há dois complicadores políticos no horizonte. O primeiro é o fato de o País, tradicionalmente, abster-se de designar quaisquer grupos como “organizações terroristas”. Essa é uma posição legalista do Itamaraty, que considera o “terrorismo” como um método ilegal de ação, não como uma identidade em si mesma. Então, se o Brasil for pressionado pelos EUA a se posicionar a respeito, o atual governo pode vir a ser tachado como conivente com o terrorismo, especialmente à medida que nações do entorno aderirem à classificação proposta por Trump, como fizeram, em agosto, os governos do Paraguai e da Guiana, sob aplausos de Rubio.
O segundo complicador é a insistência do deputado federal Eduardo Bolsonaro de associar o PT ao PCC. Na Câmara, o parlamentar “autoexilado” repetiu esse discurso durante anos, o que pode agora atrair a atenção de uma Casa Branca interessada em hostilizar o presidente Lula e favorecer Jair Bolsonaro, sobretudo com a aproximação de um novo ano eleitoral carregado de incertezas e de instabilidade no País. •
Publicado na edição n° 1377 de CartaCapital, em 03 de setembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Patrulha no quintal’
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