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Um degrau abaixo

Israel amplifica a ocupação e a violência e mata de forma indiscriminada jornalistas e equipes de saúde

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Escárnio. O governo israelense diz se arrepender da morte de jornalistas e do pessoal da saúde, embora a invasão a Gaza seja extremamente letal para estes profissionais – Imagem: Ministério da Defesa/Israel/AFP e Abed R. Khatib/Anadolu/AFP
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Após o assassinato de jornalistas, o exército israelense iniciou, na quarta-feira 27, uma nova onda de expulsão de palestinos do norte de Gaza, parte do plano de ocupação do território. O porta-voz das forças armadas em língua árabe, Avichay ­Adraee, declarou que “os moradores da ­Cidade de Gaza e do Norte” deveriam sair para regiões ao sul “vazias”, como Mawasi, um dos campos de concentração criados no início de julho. No comunicado, informa que “cada família que se deslocar para o sul receberá ajuda humanitária mais abundante do que atualmente”. Um risco. Os atuais pontos de distribuição de alimentos administrados por Israel e mercenários dos EUA tornaram-se locais de extermínio. Dados recentes do Escritório de Assuntos Humanitários da ONU para os Territórios Palestinos Ocupados registram, entre 27 de maio e 18 de agosto, o assassinato de 1.889 palestinos quando buscavam comida, 1.024 nos postos do GHF. O centro de pesquisa Forensic ­Architecture, em estudo recente sobre Gaza, identificou que o sistema é um método de “forçar deslocamento e reconcentração” por meio de um modelo de distribuição militarizada, provendo rações de comida em lugares para os quais Israel quer que os palestinos sejam deslocados.

O sul de Gaza tampouco é seguro. Na segunda-feira 25, soldados israelenses mataram 22 palestinos, incluindo quatro trabalhadores de saúde e cinco jornalistas, no Hospital Nasser. O ataque ocorreu pelo uso da tática double tap, quando um segundo ataque é realizado no mesmo local minutos depois da agressão inicial. O problema para os israelenses é que o massacre foi transmitido ao vivo por conta de uma equipe de tevê que registrava o resgate dos feridos após o primeiro bombardeio. As imagens se espalharam pelas redes. A destruição causou ultraje momentâneo e condenação internacional. Até Donald Trump, entusiasmado com as operações israelenses em Gaza, reclamou: “Bem, não estou feliz com isso. Eu não quero ver isso”.

O breve e superficial desconforto de Trump chegou em Tel-Aviv. O gabinete do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, emitiu nota na qual afirmava que “Israel se arrepende profundamente do trágico equívoco” e que “valoriza o trabalho de jornalistas, equipes médicas e civis”. Um escárnio. O Comitê de Proteção a Jornalistas, organização ­baseada em Nova York, registra até agora 191 jornalistas palestinos mortos, incluídos os assassinados na segunda. A operação em Gaza configura-se como a mais letal para profissionais de mídia. Uma comparação: entre 2003 e 2025, segundo o comitê, 192 jornalistas foram assassinados no Iraque. A “preocupação” de Netanyahu com equipes médicas, por sua vez, reflete-se nos números de hospitais destruídos e trabalhadores de saúde mortos. De acordo com dados da OCHA–OPT, 18 de 36 hospitais funcionam parcialmente, nenhum no norte de Gaza ou em Rafah, a cidade mais ao sul. Apenas dez de 16 instalados em campos temporários funcionam parcialmente, um em Rafah e nenhum ao norte. Até agora, 1.590 trabalhadores da área de saúde foram mortos.

Netanyahu diz lamentar os ataques ao Hospital Nasser

A violência não está apenas nos números, mas nos relatos dos ataques a atendentes de emergência. O site israelense +972 divulgou a investigação de diversos casos do uso do double tap no fim de julho, cruzando depoimentos de oficiais militares, testemunhas palestinas e análise de casos. De acordo com o depoimento de um oficial, uma das táticas usadas foi bloquear a chegada de ambulâncias aos locais dos ataques. “Lembro de uma mulher chorando e gritando, o corpo de sua filha estava queimando. Ela ainda estava viva. Era possível ouvir as ambulâncias, e então você não as deixava entrar”, descreve um dos entrevistados. Outro episódio aconteceu em uma escola em Jabalia, em maio. O exército atacou uma instituição para meninas na qual muitas famílias buscaram abrigo. Na segunda rodada de ataque, as equipes de resgate foram barradas. De acordo com os palestinos, “enquanto víamos corpos queimando, havia gente ferida que podíamos ter levado à ambulância, mas o exército avisou: ‘Deixem a escola, porque nós vamos bombardeá-la de novo’”.

O relatório semanal da OCHA–OPT registra 62.122 mortes desde o início da invasão, dos quais 18.430 crianças. Uma investigação recente do The Guardian e do +972 revela que os registros da base do próprio exército israelense indicavam: 83% dos palestinos mortos são civis. Quando não é massacrada, a população é submetida a severa restrição de alimentos e água. De acordo com dados do Ministério da Saúde local, perto de 269 cidadãos, 112 crianças entre eles, morreram de desnutrição em quase dois anos. A maioria das mortes foi, porém, registrada a partir de julho último: 209 ao todo, 51 crianças.

Segundo Alex de Waal, pesquisador e autor de Mass Starvation: The History and Future of Famine, “o que torna a fome produzida por Israel em Gaza um caso único é o fato de ter reduzido uma população saudável e bem nutrida a condições de emergência alimentar aguda em questão de semanas e, em seguida, tê-la mantido nesse nível de privação extrema por 20 meses, à beira do limiar da fome”. Diferentemente de outros casos contemporâneos, como Sudão, Etiópia, Iêmen e Síria, afirma De Waal­, o responsável, Israel, teria a capacidade de acabar com a situação imediatamente.

O IPC, iniciativa que analisa situações de fome em mais de 30 países, acaba de lançar a quinta análise sobre o drama em Gaza. A conclusão sobre o período entre 1º de julho e 15 de agosto é que o distrito mais ao norte está no nível 5 da escala de insegurança alimentar. “Não significa apenas fome, mas que os moradores estão morrendo de fome”. Outras regiões atingiram o nível 4 na escala, o que coloca todo o território sob enorme risco. “Não se trata apenas do fenômeno de indivíduos passando fome, mas também da destruição da coesão social, dos laços de solidariedade e da compaixão em uma sociedade. Assim, ela se desintegra à medida que os habitantes competem por comida, escondem ou roubam alimentos de seus familiares e vizinhos”, afirma De Waal. •

Publicado na edição n° 1377 de CartaCapital, em 03 de setembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um degrau abaixo’

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