


Opinião
4 anos da Lei de Violência Política de Gênero e sua nova arena: o ambiente digital
A internet, com seus avanços tecnológicos, não pode se transformar no espaço do vale-tudo político


Neste mês de agosto, completam-se quatro anos da promulgação da Lei de Violência Política de Gênero no Brasil. A data é motivo de celebração, pois marca uma conquista histórica fruto de décadas de luta das mulheres e dos movimentos sociais, por participação das mulheres nos espaços de poder e por garantias de proteção no exercício de seus mandatos e funções públicas.
A Lei 14.192/2021 define violência política contra a mulher como: “toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher” e que “constituem igualmente atos de violência política contra a mulher qualquer distinção, exclusão ou restrição no reconhecimento, gozo ou exercício de seus direitos e de suas liberdades políticas fundamentais, em virtude do sexo”. Em outras palavras, trata-se de uma legislação voltada à proteção e garantia da permanência das mulheres na vida pública — e de seus projetos políticos.
Passados quatro anos de existência da Lei, podemos analisar que embora ela seja reconhecida como um avanço institucional, ela possui limitações significativas, principalmente se comparada com legislações internacionais, sobretudo da América Latina.
O relatório “Violência Política de Gênero e Raça no Brasil: Dois anos da Lei 14.192/2021 (2023)” produzido pelo Instituto Marielle Franco aponta estas limitações, especialmente no que diz respeito à ausência de uma abordagem interseccional. O fenômeno da violência política de gênero no Brasil é atravessado de forma profunda pelas dimensões de raça, classe, território e orientação sexual. Ignorar essas intersecções, significa invisibilizar as experiências das mulheres negras, indígenas, quilombolas, travestis e transexuais. A exemplo disso, a lei utiliza o termo “sexo” e não “gênero” para se referir às mulheres, optando por uma visão restritiva que ignora as mulheres transexuais e travestis que têm ingressado cada vez mais na política institucional. Desta forma, incluir expressamente a dimensão da transgeneridade não é apenas desejável, é urgente. Sobretudo em um país como o Brasil, que segue liderando o ranking mundial de assassinatos de pessoas trans.
Além disso, há uma distância considerável entre o que a lei prevê e o que de fato se concretiza. Sem mecanismos eficazes de acolhimento, denúncia, investigação e responsabilização, a norma perde força. As vítimas continuam desprotegidas, e os agressores, impunes. Por isso, é fundamental ir além da existência formal da lei e construir uma política nacional de enfrentamento à violência política de gênero e raça, além de aprimorar a legislação vigente para que todas as mulheres — em sua diversidade — estejam efetivamente protegidas.
Nos últimos anos, o espaço digital, outrora celebrado como ferramenta de democratização do acesso à informação e ampliação da participação política, tornou-se palco da violência política de gênero e raça. Disfarçada sob o véu da liberdade de expressão, ela ataca sistematicamente, destrói reputações, propaga desinformação e brutalidade e ameaça o próprio tecido democrático. Diante desta crescente realidade, e considerando tanto os limites da lei quanto sua baixa implementação, o Instituto Marielle Franco se debruçou sobre essa nova dimensão do problema, esta nova arena: o ambiente digital.
Neste mês de agosto, tão simbólico no combate às violências de gênero com o aniversário da Lei de Violência Política de Gênero e da Lei Maria da Penha, lançaremos a pesquisa “Regime de Ameaça: Violência Política de Gênero e Raça no Ambiente Digital” . A pesquisa busca compreender o papel da internet na ampliação deste tipo de violência e na proteção das mulheres. A cada novo ciclo eleitoral vemos o papel da internet e das redes sociais se tornando cada vez maior, e por conseguinte também o aumento dos casos de violência política dentro destes espaços.
O assassinato de Marielle Franco foi seguido, quase imediatamente, por uma onda coordenada de fake news e desinformação voltadas a atacar sua imagem e distorcer sua memória. O episódio se tornou um exemplo emblemático de como a violência política de gênero e raça opera no ambiente digital. A partir desse caso, o Instituto Marielle Franco reuniu e analisou informações do processo de acolhimento de casos, que faz desde sua fundação, em parceria com a Justiça Global e Terra de Direitos. O resultado é uma base de dados inédita que nos ajuda a entender como essa violência se organiza e se manifesta no meio digital.
Parte dos dados vem ilustrar o que outras pesquisas do campo nos apontam: mulheres negras são as maiores vítimas de violência política de gênero e raça no Brasil. Porém a maioria deles nos apresenta elementos novos para aprofundarmos nosso trabalho enquanto sociedade civil, mas sobretudo enquanto Estado. Como por exemplo, se as mulheres vítimas em sua maioria têm mandato ou não, como os casos estão distribuídos pelo território nacional, o que acontece com o dado quando inserimos a orientação sexual interseccionada ao gênero e raça, como as violências se apresentam, de que tipo e em que plataformas, se as ameaças fazem menção ao caso da Marielle, entre outros. Na pesquisa trazemos todos esses novos dados, somado à uma análise aprofundada sobre o contexto brasileiro e campo dos direitos humanos. Essas informações são cruciais não apenas para o trabalho da sociedade civil, mas, sobretudo, para que o Estado e as instituições desenvolvam respostas eficazes e alinhadas à realidade do país.
A internet, com seus avanços tecnológicos, não pode se transformar no espaço do vale-tudo político — onde se manipulam narrativas, ampliam ódio e enfraquecem o debate democrático. O desafio é evidente: como garantir que o ambiente digital seja um espaço seguro para o debate público? A pesquisa oferece caminhos concretos e recomendações para enfrentarmos esse fenômeno. E traz uma clara mensagem: enfrentar a violência política de gênero e raça não é só uma questão de justiça para com as mulheres. É uma questão de sobrevivência democrática. Porque, no fim, o que está em jogo não é apenas o direito de ocupar a vida pública — é o próprio futuro da democracia.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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