Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)

Brasil, um pária das Relações Internacionais

O atual isolamento do Brasil decorre essencialmente de uma política externa equivocada, que colide com as grandes tendências geopolíticas mundiais

Brasil, um pária das Relações Internacionais
Brasil, um pária das Relações Internacionais
Temer na reunião do G20: anônimo, desconfortável e literalmente escanteado
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Por Marcelo Zero*

Com o golpe, o Brasil se tornou um pária das Relações Internacionais. Como efeito, ninguém quer muita conversa com um governo que surgiu da “assembleia-geral de bandidos” de Eduardo Cunha e que já foi definido como a “quadrilha mais perigosa” do país.

Em cenário inconcebível há pouco tempo, líderes mundiais vêm à América do Sul sem passar pelo Brasil, o maior país do subcontinente.

Angela Merkel visitou a Argentina há poucas semanas e voou direto para o México, sem sequer fazer uma pequena escala em Brasília. Sergio Matarella, presidente italiano, também esteve recentemente em Buenos Aires e Montevidéu, mas evitou contatos com governo da “turma da sangria”.

Em janeiro, François Hollande esteve no Chile e na Colômbia, mas recusou-se a fazer visita oficial aos golpistas. Mesmo o generoso Papa Francisco tem se recusado a vir ao Brasil, maior país católico do mundo, por receio a uma associação espiritual e moralmente condenável.

Até agora, o governo do golpe só conseguiu ser anfitrião de Macri, que se dispôs a vir ao Brasil para alinhar-se ao governo golpista com o intuito de expulsar a Venezuela do Mercosul.

Nas pouquíssimas viagens internacionais, a situação não é melhor. Em sua estreia no cenário mundial, a imagem patética percorreu o mundo: Temer, anônimo, desconfortável, literalmente escanteado na foto oficial do G20, a qual revelou, de forma crua, incontestável, o isolamento de um governante sem um único voto, que causa constrangimento e embaraço por onde passa.

No cenário internacional, o “fora Temer” sempre foi uma realidade.

A viagem à Rússia não mudará esse fato. Moscou está preocupado com a guinada escancarada pró-EUA da política externa brasileira. Quer preservar uma relação estratégica com um Estado que faz parte do BRICS. Engole Temer para continuar próximo ao Brasil.

Ninguém pode culpar a comunidade internacional por evitar contatos maiores com um governo ilegítimo e corrupto, fruto de um anacrônico golpe de Estado, que nos fez retroceder ao lamentável status de uma república bananeira.

Política externa “ativa e altiva”

Mas a questão maior não é essa. O atual isolamento do Brasil decorre essencialmente de uma política externa equivocada, que colide com as grandes tendências geopolíticas mundiais.

Nos anos pré-golpe, a política externa “ativa e altiva” dos governos progressistas alterou profundamente a inserção internacional do país.

As relações bilaterais foram diversificadas, ampliaram-se as parcerias estratégicas com países emergentes, investiu-se mais na integração regional e a cooperação Sul-Sul adquiriu centralidade.

Abandonou-se a ideia ingênua de que a submissão aos desígnios da única superpotência e a inclusão acrítica no processo de globalização nos faria aceder a um Brave New World de independência e prosperidade.

Enterrou-se a agenda regressiva da ALCA assimétrica, e o Brasil passou a criar espaços próprios de influência, articulando-se com outros emergentes em foros como o BRICS.

Investimos no multilateralismo e na conformação de um mundo menos desigual.

Com essa política externa, acumulamos superávit comercial de US$ 308 bilhões (até 2014) e reservas líquidas de US$ 375 bilhões e eliminamos nossa dívida externa líquida.

Tornamos-nos credores internacionais, inclusive do FMI, aumentamos nossa participação no comércio mundial de 0,88% (2001) para 1,46% (2011) e obtivemos protagonismo mundial inédito, com Lula se convertendo numa liderança internacional cortejada e respeitada, figura central em qualquer foro mundial.

Celso Amorim chegou a ser classificado como o melhor chanceler do mundo, pela prestigiada revista Foreign Policy. Ao contrário do que diz o ridículo clichê conservador, foi justamente na época dessa política externa “isolacionista” que o Brasil teve mais influência no mundo.

Agora, contudo, o governo ilegítimo substituiu a política externa altiva e ativa por uma política externa omissa e submissa. Trata-se, na realidade, de mero aggiornamento da fracassada política externa dos tristes e descalços tempos de FHC, que, ao buscar a chamada “autonomia pela integração”, conseguiu apenas mais dependência, menos integração e protagonismo reduzido.

Apostando tudo nas relações bilaterais com os EUA nos tornamos um país menor, de escasso prestígio mundial, além de economicamente dependente e débil. Não chegamos ao ponto da Argentina, que conseguiu a proeza de ter “relaciones carnales” com os EUA, mas chegamos perto. Nossa soberania foi bastante bolinada.

No cômputo geral, todo esse disciplinado investimento vira-lata em dependência, combinado com a âncora cambial, resultou em déficit comercial total de US$ 8,6 bilhões em oito anos, reservas líquidas próprias de minguados US$ 16 bilhões, dívida externa líquida de 37% do PIB, uma participação no comércio mundial de mero 0,9 %, três idas ao FMI para pedir alívio financeiro e um baixo protagonismo internacional.

Entretanto, o retorno à mesma política externa fracassada ocorre num contexto inteiramente diverso. Na época de FHC, o mundo vivia o auge do paradigma neoliberal. O Consenso de Washington dominava corações e mentes.

As autoridades europeias e norte-americanas estavam empenhadíssimas na abertura comercial e financeira em todo o mundo, que era socada goela abaixo dos países em desenvolvimento.

Os EUA exerciam liderança praticamente inconteste na ordem mundial marcada pelo unilateralismo belicista.

Ademais, a economia e o comércio internacional iam de vento em popa, com pequenos sobressaltos causados por crises regionais e locais autocontidas.

No entanto, hoje o mundo vive a pior crise econômica desde a Grande Depressão de 1929.

Crise profunda e sistêmica causada justamente pela desregulamentação neoliberal, que aprofundou desigualdades e fez colapsar as economias reais.

O Consenso de Washington virou uma piada anacrônica e a liderança antes inconteste dos EUA atualmente convive com a ascensão meteórica do BRICS e fraturas entre seus aliados históricos.

Assim, a ordem mundial é hoje muito diferente da que prevaleceu na década de 1990, quando os ideólogos do “fim da História” proliferaram como fungos. Além disso, está claro que o novo governo norte-americano e alguns governos europeus não têm mais o menor interesse em promover livre comércio.

Dessa forma, a tragédia de ontem se repete hoje como farsa. Farsa guiada por inacreditável miopia estratégica.

Enquanto em quase todo o mundo há questionamentos referentes à globalização assimétrica guiada pelo fracassado neoliberalismo, o governo do golpe investe numa arcaica e ingênua integração às “cadeias internacionais de valor”, que nos fará chutar a escada do desenvolvimento, convertendo-nos definitivamente num país pequeno e periférico.

Em meio à venda do pré-sal, de terras e do patrimônio público a preço de banana, em meio a exercícios militares conjuntos com os EUA na Amazônia, em meio à ridícula adesão do país à OCDE, em meio à destruição do Mercosul e da integração regional, e, last but not least, em meio aos coices diplomáticos dos folclóricos chanceleres do PSDB, o governo do golpe cava o buraco onde será enterrada a soberania do Brasil.

Quem investe contra si mesmo vira pária. No máximo, vira-lata. Em qualquer cenário, é país a ser pouco visitado.

* Marcelo Zero, brasileiro, sociólogo e especialista em Relações Internacionais, é contra golpes de Estado. Integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.

 

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